Por Humberto Barrionuevo Fabretti
Mais uma vez as comunidades do Rio de Janeiro sofrem procedimentos de pacificação que mais parecem campanhas militares. Em nome de uma pretensa “segurança”, que segundo o sociólogo polonês Zygmunt Baumann, tornou-se uma obsessão da sociedade moderna. Em nome dessa pretensa segurança as cidades foram divididas em “asfalto” e “favela”. Ao asfalto pertencem os cidadãos com todos os seus direitos, à favela os inimigos, fonte inesgotável de perigo aos “cidadãos de bem”.
A favela, referida eufemisticamente como “comunidade”, é o território inimigo que abriga os responsáveis pelo maior mal dos nossos dias: o criminoso. A favela é o local onde o inimigo se cria, se desenvolve e se prolifera, infestando a cidade.
O asfalto é o habitat do cidadão, quase sempre vítima. É no asfalto que o cidadão cresce sem ao menos saber da existência da favela. A favela somente chega aos olhos do cidadão quando o favelado lhe bate à porta para pedir emprego, suplicar esmolas ou exigir-lhe o relógio em troca da vida.
A favela, fonte de perigo, precisa ser conquistada, controlada e, se possível, exterminada. Quem mora na favela ou é vagabundo ou é criminoso. Se nunca foi preso é por sorte, mas é questão de tempo. O favelado já nasce condenado à pena perpétua da miséria e estigmatização ou à pena de morte da bala conhecida.
O asfalto precisa ser protegido, limpo e higienizado. Quem mora no asfalto é cidadão de bem, trabalhador, pagador de impostos. O cidadão do asfalto não comete crimes, pelo menos não aqueles que assustam, que passam no noticiário de fim de tarde. O cidadão do asfalto é diferenciado, pois contribui com o crescimento do país e gera renda.
Na favela a regra é o Estado de Exceção. Para a favela, Portaria Normativa do Ministério da Defesa ( 3.461/2013) vale mais que a Constituição Federal, e é o suficiente para autorizar as forças armadas, que foram treinadas para exterminar inimigos e para isso utilizam armamentos de guerra, a fazer aquilo que não sabem. Para a favela não bastam as polícias militar, civil e federal, também são necessários o exército e a marinha. Na favela a polícia existe para bater, prender e matar.
No asfalto a regra é o Estado Democrático. Para o asfalto a Constituição Federal tem força de lei, os direitos são respeitados e o Estado tem limites. As polícias também estão presentes no asfalto, mas para proteger esse território e seus habitantes de seus inimigos favelados. No asfalto a polícia existe para servir e proteger.
No asfalto os cidadãos vivem em domicílios que são protegidos pela Constituição e pela polícia. A polícia somente ingressa num domicílio quando expressamente autorizada e, normalmente, é porque algum favelado o invadiu.
Na favela, como todos sabem, não há domicílio, pois barraco não é casa. Para a favela os juízes concedem mandados de busca e apreensão coletivos, autorizam a entrada dos policiais ou dos militares onde bem entenderem, afinal aquilo que lá está com certeza foi roubado de alguém do asfalto. E mesmo quando falta a autorização judicial, entram do mesmo jeito, afinal aquilo não é casa.
No asfalto todos tem nome, principalmente quando vítimas. Quando os cidadãos são atingidos pela violência da favela, se conseguem sair vivos, são prontamente socorridos em ambulâncias e hospitais. Nos noticiários são referidos como “vítimas da violência” e sempre tem nome, profissão e família.
Na favela as pessoas não tem nome, com exceção do Amarildo, que até hoje está desaparecido. Os favelados, quando vítimas fatais da atuação policial, tem todos a mesma profissão: traficantes. Raramente sobrevivem, mas quando isso acontece são carregados no porta malas das viaturas pilotadas pelos mesmos policiais que as alvejaram. As vezes, o porta malas abre, a favelada fica pendurada, é arrastada pelo asfalto, morre, e nem sequer tem o nome citado pelos jornais. É simplesmente “favelada”.
A pacificação vende o sonho de asfaltar a favela. Vende o sonho de transformar o inimigo em cidadão, as não pessoas em pessoas. O problema é que a pacificação não é planejada a partir da lógica da cidadania, isto é, a partir da garantia dos direitos fundamentais, mas a partir da lógica militar, pela violência.
Enquanto não colocarmos o respeito à cidadania como pressuposto de toda política de segurança pública e continuarmos insistindo que uma boa política de segurança limita-se ao investimento em mais armas, mais viaturas, mais policiais e mais presídios, a realidade não se alterará.
Os moradores da favela não se sentem protegidos pelas forças pacificadores, sentem-se vigiados. A maior prova disso foi o depoimento de uma moradora de uma comunidade pacificada que perguntada sobre as melhoras da pacificação singelamente respondeu: “o fuzil só trocou de mão, continua tudo igual.”
Humberto Barrionuevo Fabretti
Advogado Criminalista e Professor Doutor de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie.