A morte de Aylan Kurdi – menino sírio morto numa praia da Turquia – demonstra o esvaziamento do reconhecimento de nosso vínculo antropológico comum expresso pela Alteridade. Não somos mais humanos. Aliás, a pergunta mais apropriada seria: quando deixamos de reconhecer o Outro como ser humano? Qualquer resposta para essa indagação é uma sinfonia ao estilo do trabalho de Beethoven, mas, ao invés de ser “Ode à Alegria” seria um “Réquiem à humanidade”.
Deixo a escolha dos motivos para esse fenômeno ocorrer livre aos meus leitores e leitoras: irresponsabilidade, indiferença, incapacidade, opção por não ser agente de transformação no seu dia a dia, entre outros, trata-se de um problema político, jurídico, econômico, de segregação. Fato: historicamente, o des-velo da Alteridade não ocorre. Consequência: a crise migratória é um exemplo nítido da barbárie humana e como seu ponto de saturação espalha o horror da nossa desumanidade em pleno século XXI. Civilizados? Tenho minhas (fortes) dúvidas.
Numa metáfora: Todo lugar, todas as pessoas, representam uma casa, um espaço que acolhe e protege. Como é possível habitar um lugar em ruínas, apesar de todos os seus ornamentos e conforto? A estabilidade dos países europeus, por exemplo, asseguraria, não apenas direitos e cidadania, mas saudáveis relações humanas?
A resposta: sem reconhecimento de um humano para outro, a vida nesse território é inviável, insuportável. Num determinado território, cujas relações humanas, políticas, jurídicas, econômicas são afetadas pelas instabilidades de conflitos armados, a vida é inviável e insuportável. Quando se clama pela ajuda, pela solidariedade expressa no reconhecimento do vínculo antropológico comum e esse não chega a qualquer ouvido, não importa quanto se grite a ponto de exaurir os pulmões, a vida é inviável e insuportável. Então, sem Alteridade, o Direito, especialmente os Humanos, e a Cidadania fracassaram como pressupostos para se assegurar condições à paz e à Dignidade Humana. Numa perspectiva imagética, a ilustração abaixo demonstra como, historicamente, optamos por não reconhecer o Outro como Humano, tornando nossas conquistas e ideais mentiras existenciais.
Não é por outro motivo que a advertência de Warat é pouco – ou nada – compreendida, tanto ao jurista[1] quanto ao cidadão de bem, como condição de viabilidades de direitos e cidadania: “[…] Já dissemos que sem alteridade toda fala dos Direitos humanos termina em piada ou drama[2]”. Nenhuma dedução (lógica), nenhum argumento (lógico), nenhuma justificação para que ocorra a segregação, a violência, a escolha de critérios mais importantes que a vida, pode suplantar a des-coberta acerca da diferença na qual habita o Outro a partir desse estar-junto no mundo. Quando a venda sobre nossa Humanidade comum se rasga, despedaça-se, aparece o apelo radical (no sentido de “raízes”) à Fraternidade, como rememora Morin[3]:
O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de ‘boa vontade’ que veiculam essa mensagem. Talvez eles sejam mais numerosos entre os inquietos, os curiosos, os abertos, os ternos, os mestiços, os bastardos e outros intermediários. O apelo à fraternidade não deve apenas atravessar a viscosidade e a impermeabilidade da indiferença. Deve superar a inimizade. A existência de um inimigo mantém ao mesmo tempo nossa barbárie e a dele. O inimigo é produzido por cegueira às vezes unilateral, mas que se torna recíproca quando respondemos com uma inimizade que nos torna igualmente hostis. É verdade que os egoísmos e os etnocentrismos, que suscitaram e não cessam de suscitar inimigos, são estruturas inalteráveis da individualidade e da subjetividade, mas, assim como essa estrutura comporta um princípio de exclusão no eu, ela comporta um princípio de inclusão num nós, e o problema chave da realização da humanidade é ampliar o nós, na relação matri-patriótica terrestre, todo ego alter e reconhecer nele um alter ego, isto é, um irmão humano.
A Terra é nossa pátria. Essa é uma afirmação a qual somente tem sentido pelas diferenças culturais e naturais de cada território no nosso Planeta. A imagem universal da expressão somos todos em um e um em todos se revela pelas adversidades e virtudes de um quebra-cabeças o qual ocorre na dimensão local, da vida microscópica, anódina e cotidiana de todos os dias. No entanto, insiste-se no En-cobrimento do Outro, de suas vozes, de suas súplicas, de seus anseios por simplesmente viver junto com o Outro no mundo[4].
Essa é a cegueira moral que nem o Direito, nem a Cidadania, conseguem trazer uma resposta adequada para a preservação da Dignidade Humana[5]. Veja-se: a morte do pequeno Aylan Kurdi não pode ser compreendida a partir do exagero midiático ou pelos bons sentimentos de cada pessoa ou Nação. Se essa for a nossa resposta, pode-se observar, com clareza, que as relações humanas não são feitas por humanos e para humanos a partir de sua humanidade, mas para aliviar, para suprimir nossa responsabilidade radical diante do Outro.
Após essa tragédia – a qual já virou drama nos diferentes canais de mídia – várias nações começaram a abrir suas portas para o Estrangeiro como forma de expiação de seus pecados. Novamente: Direitos e Cidadania para que(m)? Dessas atitudes que constituem, nas palavras de Maffesoli, a república dos bons sentimentos[6], nasce a indiferença moral, os excessos que, a cada passo, se afastam, mais e mais, de nossa humanidade. Procura-se, demasiadamente, os medicamentos capazes de nos curar dessa maldição (ou benção?), dessa nossa responsabilidade moral surgida pelo nosso vínculo antropológico comum. Por esse motivo, é necessário meditar um pouco a partir do pensamento de Bauman[7]:
Com a negligencia moral crescendo em alcance e intensidade, a demanda por analgésicos aumenta, e o consumo de tranquilizantes morais se transforma em vício. Portanto, a insensibilidade moral induzida e maquinada tende a se transformar numa compulsão ou numa ‘segunda natureza’, uma condição permanente e quase universal – com a dor moral extirpada em consequência de seu papel salutar como instrumento de advertência, alarme e ativação. Com a dor moral sufocada antes de se tornar insuportável e preocupante, a rede de vínculos humanos composta de fios morais se torna cada vez mais débil e frágil, vindo a se esgarçar. Com cidadãos treinados a buscar a salvação de seus contratempos e a solução de seus problemas nos mercados de consumo, a política pode (ou é estimulada, pressionada e, em última instância, coagida a) interpelar seus súditos como consumidores, em primeiro lugar, e só muito depois como cidadãos; e a redefinir o ardor consumista como virtude cívica, e a atividade de consumo como a realização da principal tarefa de um cidadão.
A indagação que se formula, agora, é: Essa suposta “abertura ao Estrangeiro” nasce como perspectiva solidária do vínculo antropológico comum ou se inicia e se mantém no tempo como atitudes próprias da república dos bons sentimentos? A clareza dessa proposta depende de como se encara a epifania do Rosto nas lições de Lévinas.
O Rosto, no qual se compreende o Outro, é atitude Ética. Ao se rememorar Lévinas, “[…] o rosto fala porque é ele que torna possível e começa todo o discurso[8]”. Quando o Rosto se desvela diante de nós, aparece um mandamento: Tu não matarás. Esse é o primeiro aspecto ético leviasiano para quem o Rosto de outrem está nu e, para esse, tudo se deve e tudo se pode. Para que não reste dúvidas ao leitor ou leitora sobre a dimensão do Rosto e sua função pedagógica de evidenciar a nossa nudez comum, eis o ponto fulcral de nossa indiferença:
Essa imagem denota duas possibilidades: a) É aqui que o discurso começa; b) É aqui que o discurso nunca existiu. Prefiro a primeira opção porque insiste, ainda, nas utopias carregadas de esperança. O Rosto, na dimensão Ética, se revela pelo seu significado infinito[9]. Essa última expressão impede que se assassine o Outrem. Trata-se de uma resistência ética porque se evade uma percepção direcionada pelo interesse subjetivo. Entretanto, quando essa clareza não existe, quando os interesses se sobressaem à vida comum, o Outro não é nada. Destituído de uma condição de sujeito, ou seja, no momento que o Rosto não existe diante do “Eu”, a eliminação é aceita e executada. Nada de ressentimentos ou remorsos, afinal, assegurou-se o bem comum[10].
Levinás recorda que a “[…] epifania do rosto suscita a possibilidade de medir o infinito da tentação do assassínio, não como uma tentação de destruição total, mas como impossibilidade – puramente ética – dessa tentação e tentativa[11]”. Parece-me que a advertência do autor se transforma num apelo à indignação de que a convivência fraterna não é uma dimensão abstrata, um reino cuja paciência anestesia as almas e as torna incapaz de agir. Ao contrário, paciência não é passividade[12]. Fraternidade convive junto à violência, à segregação, à domesticação. O agir fraterno caminha em direção contrário aos excessos porque, aos poucos, o Outrem não é algo irreconhecível devido ao segredo de seu mistério, mas porque ali está, também, a totalidade[13] da vida na relação “Eu-Tu[14]”.
O Outro transgride, afronta os domínios do “Eu”. Esse cenário pode ser sintetizado, por exemplo, na figura Refugiado. O Estranho (alius – Estrangeiro) personifica a “estranheza” causada pelo Refugiado. Essa última categoria citada se torna a entidade desprovida de qualquer condição humana (política, cultural, jurídica, afetual, entre outras) e, ao mesmo tempo, será alvo das frustrações do espírito nacional por esse ocupar o lugar dos cidadãos nas empresas, indústrias, universidades. O Refugiado, numa expressão, é ninguém e, portanto, não suscita qualquer responsabilidade por parte de todos os cidadãos, aqui, desprovido de sua humanidade comum. Nesse momento, as palavras de Ricoeur[15] parecem ser interessantes: Fatalidade é ninguém; responsabilidade é alguém.
A expulsão dessas pessoas de seus lares, cidadanias, condições políticas, bem como outros fenômenos, rompe com o habitual (domesticação), encerra sua Vida (individual e coletiva), no sentido mais amplo dessa categoria, e a expõe diante da incerteza, do desconhecido. Douzinas indica que “[…] o estrangeiro não é um cidadão. Ele não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um ser humano inferior porque não é cidadão[16]”. E continua o autor: “[…] o estrangeiro é o abismo entre o home e o cidadão[17]”.
O Refugiado não pode ser protegido pelos Direitos Humanos universais. Esse alcance a todos posto pelo seu caráter normativo torna-se condição fragilizada. O Refugiado[18] não tem Nação e, portanto, não pode ser protegido pela ação da lei. Os Direitos Humanos servem aos Estados, não às pessoas. Essa é a transgressão na qual precisa ser repensada no Século XXI. Nesse momento, ao som dos choques de que algo está por vir, como se constata na abertura da terceira sinfonia de Beethoven – “Eroica” – intitulada “Prometeus” surge a epifania: Quando a família de Aylan Kurdi abandona a Síria, abandona uma vida de conflitos intermináveis e se “aventuram” num território de ninguém, ali, essas pessoas se tornam, de modo enfático, ninguém. Bingo! Expulsamos alguém para a dimensão do ninguém. Aleluia! Estamos livres da responsabilidade.
Nenhum Direito, nenhuma Cidadania se torna eficiente no decorrer sem dois pressupostos elementares. Alteridade e Fraternidade. O primeiro é o reconhecimento de que as relações humanas se des-vendam pela experiência de infinição do infinito[19], tantas vezes (d)enunciada por Lévinas. O segundo é a consolidação histórica, permanente, desse des-velo acerca do Outro e como se torna importante para enfatizar, aperfeiçoar, ampliar e disseminar todos os significados vitais desse estar-junto-com-o-Outro-no-mundo.
Política, Economia, Tecnologia, Ciência, Estado, Direito, Sociedade, Justiça são expressões que não ocorrem no território do “Eu”, mas em outro, qual seja, o do “Eu-Tu-Mundo-Nós”. Eis, portanto, o momento no qual se indaga: Somos uma república dos bons sentimentos, cheio de cidadãos de bem, ou conseguimos compreender a necessidade da Alteridade como política de Fraternidade, já descrito na música infinito particular interpretada por Marisa Monte? Pessoalmente, acredito na função transformadora das utopias[20], na aposta de que o mistério acerca do Outro, na verdade, é a minha humanidade na qual ali habita. Esse é a gênese de toda crise vivida nesse início de século XXI.
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professor universitário – Graduação e Mestrado – em Direito e Pesquisador no Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.