— Então vizinho, nada?
— Nada, vizinha, respondeu o compadre com voz desanimada.
— Ora, quando eu lhe digo que aquela criança tem maus bofes…
— Vizinha, isto não são coisas que se digam…
— Digo-lhe e repito-lhe que tem maus bofes… Deus permita que não, mas aquilo não tem bom fim…[1][2]
Memórias de um Sargento de Milícias
Quando o assunto é punição de adolescentes infratores, a temática inerente à redução da maioridade penal e a ampliação do prazo de internação ganham destaque. A polêmica não é novidade, porém, atualmente, ganha novos contornos com a aprovação no Senado do substitutivo ao PLS 333/2015. Dentre outras coisas, o projeto propõe a ampliação do prazo da medida socioeducativa de internação para dez anos, em regime especial de atendimento socioeducativo, quando o agente tiver praticado, mediante violência ou grave ameaça, o crime de homicídio doloso ou crime definido como hediondo[3].
Ocorre que, assim como a modificação do marco de imputação penal, a ampliação do prazo de internação não é mera opção político-criminal passível de modificação a qualquer momento. Com o advento da Constituição de 1988, houve uma modificação epistemológica da disciplina afeita às pessoas menores de dezoito anos: substitui-se o paradigma da incapacidade pelo paradigma da condição de pessoa em desenvolvimento[4]. Desta forma, como bem ressalta Mário Luiz Ramidoff, os artigos 227 e 228 da Constituição de 1988 consubstanciam a “síntese da doutrina da proteção integral”[5], a qual pode ser entendida como “a identificação, reconhecimento e asseguramento jurídico-legal dos direitos humanos destinados especificamente à criança e ao adolescente”[6]. Por esta doutrina (que também possui previsão normativa no primeiro artigo do ECA[7]), reconhece-se que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direito e não meros objetos de proteção[8].
Igualmente, o reconhecimento da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento é o suporte ontológico da legislação da infância e juventude[9] e, diversamente do que a mídia em sua maioria propala por meio de casos específicos (v.g. como os casos “Liana Friedenbach e Felipe Caffé” e “João Hélio Fernandes Vieites”), “é relevante salientar que os menores de 18 anos estão fora do Direito Penal, mas não estão fora do Direito!”[10].
A compreensão de que crianças e adolescentes possuem um sistema próprio às suas condições (heterogêneo[11]) não significa dizer que exista impunidade ou que os atos graves praticados por adolescentes sejam ignorados ou aceitos pelo ordenamento jurídico[12]. Pelo contrário! A medida de internação é a mais grave prevista no ECA, por isso deve ser aplicada com parcimônia e em última opção[13], sempre em obediência às diretrizes e propostas contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, sob o estandarte principiológico contido na CF e no próprio Estatuto.
Logo, a leitura da justificação original do PLS 333/2015 denuncia a verdadeira intenção da proposta, pois, ao refutar qualquer tentativa de reduzir a maioridade penal em virtude da politização sobre o tema, o Senador José Serra afirma que “Há, porém, um caminho mais curto, eficaz e viável para punir os crimes violentos praticados por jovens que têm plena consciência dos seus atos”[14].
Em outras palavras, verifica-se, claramente, que a proposta de ampliação do prazo de internação corresponde a uma antecipação da aplicação do Direito Penal. Principalmente, por fundamentar sua incidência em delitos hediondos – cometidos com violência ou grave ameaça – e homicídios dolosos, uma vez que o emprego da internação estendida se daria com base na gravidade abstrata dos delitos, prática reconhecidamente ilegal conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[15].
Ademais, a ampliação do prazo de internação retira o fundamento educativo e socializante da medida excepcional de internação para convertê-la em mera retribuição, o que é evidentemente contrário ao princípio da proteção integral[16], segundo consolidado entendimento jurisprudencial[17]. Especificamente quanto à medida de internação, frisa-se que sua aplicabilidade deve obedecer sempre os princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 227, § 3º. CF e art. 121, ECA)
Além disso, de acordo com o projeto encaminhado à Câmara dos Deputados, a internação estendida deve ser cumprida em “Regime Especial de Atendimento” (REA), o qual será cumprido em estabelecimento específico ou em ala especial, assegurada a separação dos demais detentos[18]. Isto é, o “REA” é um mecanismo bastante análogo ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). O próprio texto original do PLS 333/2015 confirma isso ao prever que o maior de dezoito anos, ainda internado, que participar de motins ou rebeliões será encaminhado ao “REA”. Do mesmo modo, o parecer final do substitutivo afirma claramente se tratar de “uma modalidade especial de aplicação do regime de internação”.
Não obstante tais irregularidades, há, também, o problema de imputação previsto no Substitutivo quanto à associação criminosa com menores de dezoito anos e a incidência de uma agravante genérica no artigo 62 quando o delito for praticado na presença ou conjuntamente com menor de 18 anos. Tais dispositivos representam bis in idem do delito de corrupção de menores, principalmente, após a edição da Súmula 500 do STJ a qual defende que este delito é formal. Outrossim, o Substitutivo, em gritante impropriedade legislativa, propõe como “solução” a criação de dois tipos, um formal e outro material para a mesma conduta. Desta forma, o art. 244-B passaria a ser material e o novo artigo 244-C trará a conduta criminosa na modalidade formal.
Em verdade, a proposta, ao antecipar a incidência do sistema penal, comprova a ineficiência estatal em efetivar os mecanismos e diretrizes propostos pela doutrina da proteção integral. Assim, a ampliação do prazo de internação representa, ao lado das propostas de redução da maioridade penal, a falha do Estado em cumprir suas obrigações sociais. Infelizmente, com isso prevalecerá o senso comum, para qual todo “filho de beliscão e pisadela, merece um pontapé”[19].
Décio Franco David é Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do Curso de Direito e Professor de Direito Penal da Faculdade Santa Amélia (SECAL). Professor Colaborador de Prática Forense Penal da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Professor de Direito Penal da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP). Professor da Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE). Colunista do site Justificando. Advogado.