Segundo Streck, “o mito só é mito para quem sabe o que é um mito.”[1] Para quem não sabe o que é um mito ele é uma realidade. Isto pode ser resumido no seguinte: aquele que não sabe que não vê não sabe que é… cego. Por isso conta Warat que se todos acreditassem, piamente, em Papai Noel, na noite de 24 de dezembro não haveria presentes a se distribuir. Claro! Afinal de contas, se todos acreditam no Papai Noel, quem entrega(ria) os presentes? Há, então, a necessidade de que – pelo menos um – saiba que o papai Noel é um mito! Pois o discurso da instituição no(s) caso(s) do(s) policiais que atiram pelas costas é um verdadeiro mito. Sempre dizem: “- atiraram porque o fulano furou a blitz”. Tu acreditas? Independentemente da sua resposta, importa-nos, pois, o simbólico. No dizer de Castoriadis, “tudo que se apresenta no mundo social-histórico está, de forma indissociável, entrelaçado com o simbólico.”[2] Isto explica porque autores do porte de Cassirer definem o homem como “animal symbolicum”[3] . Não obstante as divergências acerca desta última afirmação, o fato é que, se as instituições não se reduzem (só) ao simbólico, uma coisa parece certa: elas existem no simbólico e são impossíveis fora de um simbólico em segundo grau, constituindo, cada qual, sua rede simbólica.[4]
Permita-nos explicar isso: o tiro do policial no morador da comunidade é real por excelência, mas simbólico na sua “essência”. Dito de outro modo: o tiro é dado no centro da comunidade para que todos os moradores dali… enxerguem! O que importa, portanto, é o que os outros pensam sobre esse gesto. Qual é a simbologia? A banalização do medo e do terror. E o recado: “Homens de preto qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar o corpo no chão”.[5] Curiosamente, entretanto – em alarmante conluio com a barbárie – o Estado institucionaliza o genocídio através de simbologias e símbolos. Como? A faca na caveira responde.[6]
Eis, então, um bom momento – quiçá o melhor – para trazer à tona o seguinte ensinamento de Warat: “Não podemos esquecer que, quando se banaliza o terror e as mortes também está se tranqüilizando o sentimento de culpa, o horror que pode invadir a alma dos genocidas…”[7] Registre-se, por oportuno, que no concernente ao território “favela”, o seu não controle, segundo Malaguti, forma a figura do “Eixo do Mal”, onde a ocupação se faz por meio de duas figuras fantasmática: o traficante e o terrorista.[8]
Ora, se toda compreensão[9] implica uma pré-compreensão[10] que é pré-figurada por uma tradição[11] determinada em que o sujeito vive e que modela os seus pré-juízos,[12] então isso significa dizer que nossos policiais estão falando (e agindo) a partir de um determinado lugar; de uma determinada cultura[13], enfim, de uma tradição. E que lugar de fala é esse? É a tradição autoritária. Aliás, não só eles, mas a maioria dos intérpretes do direito, também. Claro: não há suspensão dos pré-juízos! Daí que o resultado só pode ser um… museu de novidades (o já sempre sabido sobre o direito enfim, como o direito sempre-tem-sido) e como ele “é” e tem sido estudado nas faculdades, reproduzido nos manuais e aplicado quotidianamente.[14] Ora, se todos nós somos jogados/lançados, de forma inexorável, em um mundo cultural-histórico, ou seja: em uma tradição[15], faz-se mister revolver (sempre) o chão lingüístico em que está assentada a tradição, reconstruindo a história institucional do fenômeno”[16].
É o deveria ocorrer, por exemplo, com o Código de Processo Penal Brasileiro. Revolvendo e reconstruindo a história institucional deste fenômeno, chegamos, com o Geral Prado, no contexto autoritário.Nas palavras do mestre:
“A quadra histórica em que surgiu o CPP brasileiro era autoritária e seu substrato ideológico conformou o paradigma processual penal. A articulação das categorias ação penal pública obrigatória-poderes instrutórios do juiz-poder para condenar mesmo diante do pedido de absolvição do Ministério Público reflete clara simetria com a doutrina do estado de exceção schmittidiano, que temia e considerava <[17]
Registra o mestre, por relevante, que “o autoritarismo expressava-se pela superioridade do coletivo sobre o individual, mas o não equivalia à sociedade civil e sim ao Estado.”[18] Se isto é assim – e se não há uma suspensão dos pré-juízos por parte do intérprete – então pode-se afirmar que o paradigma dominante, isto é: o modo-de-compreender o mundo irá influenciar de maneira determinante a conclusão que o intérprete chegará. E pior: sem que este se dê conta disso!Por isso, não se pergunte por que alguns autores ainda continuam acreditando na famigerada verdade real, livre convencimento motivado e etc., mas se pergunte, antes, que paradigma (filosófico) conforma o modo de compreender o mundo daquele autor.
Parafraseando Castoriadis, não pergunte como é possível que a maioria das pessoas não venham a roubar, ainda que tivessem fome? Não pergunte nem mesmo como é possível que eles continuem a votar em tal partido, mesmo após terem sido enganados repetidamente? Pergunte-se antes: Qual parcela de todo o meu pensamento e de todas as minhas maneiras de ver as coisas e fazer coisas que não está condicionada e co-determinda, em grau decisivo, pela estrutura e pelas significações de minha língua materna, pelas organizações do mundo em que essa língua carrega, por todos os ‘faça’ ou ‘não faça’ com que frequentemente fui assediado…[19] A luz de tais premissas é possível concluir, com Stein,que as mudanças de paradigmas que resultam de seu envelhecimento ou de sua obsolescência não extinguem as idéias produzidas no seu contexto.[20] Imperioso fixar, mesmo que brevemente, até porque não haveria espaço – quiçá fôlego – o papel da mídia neste contexto autoritário. Trata-se, pois, de uma verdadeira propagadora da violência e do caos.
Nos dizeres do mestre Streck: “esse processo se materializa graças aos meios de comunicação de massa, que são os principais gestores do mito da catástrofe.”[21] Da reunião dessa conjuntura, diz Warat, emerge, pois,“uma ‘discursividade magnética’, que – sem muitos inconvenientes – contribui para a estabilização e consolidação de sentidos que perturbam as possibilidades de uma forma social democrática.”[22]O resultado, como não poderia deixar de ser, é, segundo Jacinto Coutinho, um punitivismo desmedido.[23]Tudo – ou quase tudo –, no fundo, faz emergir a seguinte reflexão:
“É pela massificação da informação da desgraça (principalmente), vendida como mecanismo encobridor (ou destruidor?) da sensibilidade, que se tem conseguido deixar o ser humano sem a opção de não ser brutalizado.”[24] Vai-se embora, conclui Coutinho, aquilo que é mais caro ao ser racional: “ser um fim em si mesmo e, portanto, possuir valor não relativo, isto é, a sua dignidade, intrínseca e imanente.”[25]
Nesse sentido, percebe-se como a concepção de paz sustentada numa “polícia pacificadora”, nos moldes como estão, é impossível de se sustentar. “Tem-se paz, unicamente, nas… aparências.”[26]E só. Trata-se, pois, de “uma mentira vivenciada como uma verdade, uma mentira que pretende ser levada a sério.”[27] Nessa guerra, temos, de um lado, os excluídos (aqueles que pouco possuem) e os esquecidos (aqueles que nada têm). E quem ganha – sempre! – é a máquina bélica neoliberal (aquela que tudo tem). “O resultado é uma guerra em todas as horas, em todas as partes, que só é interrompida pelos… comerciais da televisão.”[28]
Fica claro, portanto, que, no lugar da Constituição, coloca-se a máquina bélica dirigente neoliberal. E como ela funciona? Produzindo “heróis que vendem”.Warat explica. “Quem foram os heróis do 11 de Setembro? Os bombeiros de NY. Mas esse tipo de heróis que reconstroem não servem para o Dinheiro S.A. A máfia do dinheiro precisa de heróis destrutivos, por isso os heróis que ficaram foram as imagens dos tanques de Guerra entrando no Iraque. Ninguém se lembra dos bombeiros nos escombros…”[29]
Neste paradigma, o sujeito de direito não vale nada. Importa –somente – o sujeito de crédito.[30] E a autonomia do Direito? Cede. Dando lugar ao relativismo. Fica-se, pois, sem solução aparente, e o pior: o Direito, neste contexto, diz Morais da Rosa, acaba sendo “transformado em instrumento econômico diante da mundialização do neoliberalismo.”[31] Daí é que em nome da eficiência do controle invoca-se “Tim Maia” e “vale tudo”! Ou seja: a estrutura propõe a exclusão e, depois, sorri, propondo a… exclusão, novamente, via sistema penal, e os excelentes funcionários públicos nefelibatas – tal qual Eichmann –, na melhor expressão Kantiana, cumprem suas funções, sem limites.[32]
Assim, fere-se, de morte, àquele que, segundo Streck, é um dos princípios fundamentais da República: “a preservação da autonomia do direito”[33]. Dito de outro modo: “O Direito passa a ser um meio para atendimento do fim superior do crescimento econômico.”[34] Deste modo, sai o princípio da força normativa da Constituição (Hesse) e entra o sic “princípio” do melhor interesse do mercado. Por isso o Direito precisa de um “basta”, como diz Warat: “Basta de suavizar ideologicamente as coisas. Basta de chamar ao terror por nomes mais benevolentes: coerção, sanção, pena e etc…”[35] Basta!
Djefferson Amadeus é Mestrando em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ). Bosista Capes. Pós-Graduado em Filosofia (PUC-RJ). Pós-Graduado em Ciências Criminais (UERJ). Pós-Graduando em Processo Penal (ABDCONST). Pesquisador no grupo institucional de pesquisa em Filosofia do Direito, coordenado pelo Dr. Vicente de Paulo Barretto (UNESA/CNPq). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Matrizes Autoritárias do Processo Penal Brasileiro – para além da influência do Código Rocco (1941), coordenado pelo Dr. Geraldo Prado (FND-UFRJ). Pesquisador no grupo de pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais, liderado pelo Dr. Salah Hassan Kaled Júnior (FURG/CNPq). Membro da Comissão de Direito à Educação da OAB-RJ. Coordenador do Grupo de assuntos Penitenciários da Comissão de Direito à Educação OAB-RJ. Advogado. Alberto Sampaio Jr é advogado.