#MexeuComUmaMexeuComTodas #CombateàViolênciaContraaMulher
Três mulheres. Duas jovens de aproximadamente 30 anos e uma senhora de 69. Todas iam passar pela audiência de custódia acusadas por um suposto furto numa loja do centro da cidade. O juiz pede para que entre uma de cada vez. A primeira jovem está com a jaqueta cortada. Durante a audiência, o juiz lhe pergunta se houve alguma irregularidade durante a prisão. A moça responde que ela e sua prima tiveram as jaquetas cortadas por um policial na delegacia e foram ameaçadas. Segundo ela, caso não assinassem o BO, os policiais iriam “arregaçar suas bucetas” como fizeram com suas jaquetas. Com um olhar irônico, o juiz a questiona “mas isso é agressão?”. A moça, demonstrando indignação com a pergunta, responde “Claro! Eles atingiram nosso psicológico doutor”.
A violência institucional representa um fenômeno tão complexo que não é possível observá-lo de maneira apenas situacional. A forma como essas mulheres foram tratadas pelos policiais, além de ter sido bastante violenta, revela como a violência institucional está presente no cotidiano policial. A tortura e o abuso de autoridade são apenas alguns exemplos de práticas violentas que estão intimamente ligadas à atuação das forças de ordem, que recorrem a esses expedientes violentos nos momentos da prisão de suspeitos, nos espaços institucionalizados como delegacias, viaturas, prisões com propósitos e interesses diversos.
Sendo assim, como podemos olhar um fenômeno violento, para além da sua ocorrência? Como os operadores do direito enxergam (ou não enxergam) essa violência, especialmente aquela envolvendo as mulheres como vítimas? São essas perguntas que nos instigam a pensar como a violência institucional, enquanto um fenômeno social, se opera de maneira diferente quando as vítimas são homens e mulheres.
Não é de hoje que a prática da tortura pelas forças da ordem atua de maneira diversa, quando as suas vítimas são mulheres. Durante a ditadura civil militar, às mulheres eram submetidas a práticas iguais e diversas dos homens [1] por sua condição feminina. Nesse sentido, ser mulher é um elemento mobilizado através da possibilidade ou da real prática de violência física, psicológica e sexual contra mulheres por aqueles que praticam a tortura.
Se a tortura é um tipo de prática que se investe nos pontos sensíveis da vítima para extrair sua “produtividade”, o corpo feminino torna-se objeto das mais variadas formas de sujeição de dor e sofrimento, cujas marcas sobressaem seu corpo. A associação entre um corte na jaqueta e uma mutilação na genitália atinge a mulher sem que sejam necessárias “as vias de fato”.
O relato das mulheres ao juiz não lhe causou nenhum estranhamento, ao contrário, perguntou-lhes se aquilo que narravam era uma agressão. Por que tal questionamento por parte do magistrado? Por que tal violência parece invisível aos seus olhos?
Pesquisas apontam que a palavra da vítima de tortura é relativizada em oposição à palavra dos agentes das forças de ordem [2]. Quando a vítima é mulher – que ocupa a última posição de interesse no sistema de justiça criminal [3] – os atores jurídicos parecem não apenas relativizar suas falas, mas serem surdos a elas, o que implica num processo de revitimização.
Ao que parece, os operadores do direito ainda reproduzem as variadas representações das mulheres da sociedade patriarcal e machista [4]. Quando são presas, parecem transgredir não apenas a lei, mas aquilo que se espera delas: a passividade, a submissão, a maternidade e outras expectativas do feminino. Dessa forma, recai sobre essas mulheres não apenas a sanção penal, mas também a sanção social de ser uma suposta infratora.
Se considerarmos que a violência institucional contra mulheres não é um fato novo no Brasil, porque há pouca visibilidade sobre a sua ocorrência [5]? Porque a tortura e outras violências institucionais contra as mulheres são tratadas com leniência pelos operadores do direito? Seria a violência institucional e a tortura contra as mulheres mais uma forma de prática de violência que viria a incrementar as múltiplas formas de violência presentes, em nossa sociedade? [6]
A ausência de dados sobre a violência institucional contra as mulheres, longe de representar a inexistência dessa violência, pode significar uma subnotificação ou uma invisibilidade ao problema, além de um desinteresse na apuração de tais casos. Da violência à omissão das autoridades, da invisibilidade ao julgamento moral, as mulheres perpassam o sistema de justiça criminal entrelaçadas nas mais variadas formas de violência.
Maria Gorete Marques de Jesus é Socióloga Mestre e Doutoranda em Sociologia pela USP. Especialista em Direitos Humanos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM. Mayara Gomes é Bacharel em direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Advogada.