Chegamos em 2016. Depois de um turbulento ano passado, quando discursos de ódio obnubilaram a possibilidade de importantes debates, é o momento de fazermos um balanço sobre as perspectivas político-criminais para o novo ano. O que esperar?
Preparamos, sem pretensão de esgotarmos as possibilidades, um brevíssimo panorama sobre temas persistentes e emergentes. Indicamos, nos rodapés, importantes referenciais para aprofundar cada um dos pontos.
Inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo
Quanto aos Tribunais, a grande expectativa diz respeito ao Recurso Extraordinário 635659, manejado pela Defensoria Pública de São Paulo[1]. É discutida a (in)constitucionalidade da criminalização do porte de droga para consumo próprio. O impacto carcerário das políticas proibicionistas é inegável, sendo que o último mapeamento do Ministério da Justiça demonstrou que os presos por tráfico de drogas passaram de 31 para 138 mil, em dez anos[2].
Um dos objetivos da ação é clarificar a distinção entre usuário e traficante. As possibilidades de confusão entre as figuras são, frequentemente, apontadas como um dos motivos para o incremento das privações de liberdades[3].
Maioridade Penal, Estatuto do Desarmamento e Tipificação do Terrorismo
É inegável o crescimento dos discursos de maximização do sistema penal em meio ao senso comum. A instabilidade política, aliada à crise econômica, reforça a necessidade da busca por culpados. Na seara criminal, a procura é ainda mais intensa, permeada sempre pelo critério da seletividade penal.
Imersas nesse contexto, as casas legislativas devem decidir temas cruciais em 2016: a redução (?) da maioridade penal, a revisão (?) do estatuto do desarmamento e (mais uma) a tentativa de tipificar condutas consideradas enquanto "terroristas". Mesmo sendo apoiadas, possivelmente, por uma maioria, os prováveis resultados dessas demandas já foram antecipados por uma série de pesquisas acadêmicas sérias[4].
Não apenas corremos o sério risco de aumentarmos nossas taxas de encarceramento (redução da maioridade), incrementarmos (ainda mais) os índices de homicídio (maior acesso às armas de fogo), como também existe a possibilidade real de criminalizarmos o manifestante enquanto "terrorista".
Audiência de custódia
Mesmo sendo um instituto existente, em sentido formal, desde 1992, foi apenas em 2015 que a audiência de custódia passou a ganhar destaque em nosso cenário. Não apenas nas decisões de tribunais, como também observamos um renovado interesse doutrinário[5] acerca de sua realização.
E meio à esperança na possível prevenção de violência policial, mediante a apresentação do preso em flagrante, à aventada redução na concessão de prisões cautelares, vimos os trabalhos sobre o tema surgirem em quantidade e qualidade. Ainda assim, há franca resistência de diversos setores da magistratura quanto à sua aplicação, procedimento e logística[6]. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça[7] regulamentou a prática, o que pode diminuir a desconfiança e oposição às audiências.
Monitoramento Eletrônico
O Departamento Penitenciário Nacional assinou no início deste ano protocolo de intenções, com 15 estados e Distrito Federal, para a implantação de políticas de apoio às audiências de custódia. Entre elas, se encontram as Centrais de Monitoração Eletrônica. Elas realizarão o acompanhamento por meio de tornozeleiras de pessoas em cumprimento de medidas cautelas diversas da prisão ou medidas protetivas de urgência. Produto de importante debate no início da década[8], o monitoramento eletrônico tem se consolidado como frequente "alternativa" ao cárcere.
Psicologia do testemunho
As práticas de entrevistas com testemunhas e de reconhecimento, tanto em sede de Inquérito Policial, quanto em processos penais, foram objeto de pesquisa financiada pelo Ministério da Justiça, divulgada ao final de 2015[9]. Com a coordenação da Professora Lilian Stein, foram realizadas entrevistas com mais de 80 atores jurídicos (entre delegados de polícia, promotores de justiça, advogados, defensores públicos, juízes e policiais militares) sobre o tema, em todas as cinco regiões do país.
Os resultados demonstraram preocupante distanciamento das práticas forenses em comparação às recomendações mais aceitas na literatura científica, bem como acentuada heterogeneidade. Neste ano, devem ocorrer eventos para a discussão desses resultados, o que deve fomentar o interesse pelo tema e impulsionar os debates legislativos.
Questão Penal-psiquiátrica
A exceção permanente que constitui a dinâmica penal-psiquiátrica brasileira (ou seja, todo o contexto que envolve a execução das medidas de segurança), ainda alheia à reforma psiquiátrica, deve seguir na pauta em 2016.
A nomeação de Valencius Wurch (indicado pelo atual Ministro da Saúde Marcelo Castro) ao cargo de Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas culminou num debate intenso sobre o futuro da reforma psiquiátrica no país. Segundo o Movimento de Luta Antimanicomial e diversas entidades de defesa de Direitos Humanos, essa indicação oferece um grande risco às conquistas da reforma psiquiátrica, tendo em vista que o referido nome não representa o movimento reformador, mas sim a tortura, a violação de direitos humanos e o genocídio explícito[10] ocorridos na Casa de Saúde Dr. Eiras (o maior manicômio particular do país), na qual era diretor nos anos 90.
O ano que se inicia traz a afirmação do compromisso com a saúde mental brasileira, na busca contínua da responsabilidade/autonomia e valorização dos sujeitos, como também, da superação do aparato manicomial e seus derivados (leia-se aqui o transcurso penal-psiquiátrico), para que de uma forma equivocada, não se transforme numa mera humanização e autorreprodução desse sistema, anulando os atores enquanto sujeitos de direitos e de transformação.
10 anos da Lei “Maria da Penha” e Questões de Gênero
Considerada como importante referencial no enfrentamento às violências contra a Mulher, a lei 11.340 completará dez anos de vigência. Certamente, será o momento de realizar o necessário balanço quanto à eficácia, possibilidades e perspectivas de proteção[11]. As condições e crescimento do encarceramento feminino também devem estar no centro das discussões, com direta vinculação à política de drogas.
Resumindo, 2016 será um ano no qual, novamente, nos colocaremos na encruzilhada entre segurança e liberdades. Discutir estratégias e possibilidades de resistências e superações de modelos defasados, só será possível, com reflexão e entendimento suficientes de cada uma das políticas (im)postas. Será, com Zaffaroni, tempo de “revolução pela tomada do saber”[12].
Thayara Castelo Branco é Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, crime e Segurança Pública. Email: [email protected] Gustavo Noronha de Ávila é Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em Direito e Graduação do Unicesumar. Professor de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Unicesumar. Também é docente nos cursos de especialização em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Maringá, Unicesumar, Instituto Paranaense de Ensino, Unisinos e do Centro Universitário Ritter dos Reis (Porto Alegre/RS). Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque” (2013), e coautor, com Vera M. Guilherme, de “Abolicionismos Penais” (2015), ambas publicadas pela Editora Lumen Juris (RJ). Contato: [email protected]