A sessão do plenário da Câmara dos Deputados do domingo retrasado (17/04), que deliberou pela admissibilidade do pedido de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, abriu uma verdadeira Caixa de Pandora para muitos dos progressistas [1] brasileiros. Em meio aos pouco cerimoniosos abraços a parentes, vizinhos e papagaios dos amigos dos amigos, típicos dos 15 minutos de fama na televisão, o “baixo clero” teve a voz e a vez para mostrar a sua cara. Curtas e grossas, as justificativas dos votos de grande parte das excelências passaram ao largo das “pedaladas fiscais”, cerne do pedido de impeachment assinado por Janaína Paschoal, Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior. Em seu lugar, invocaram-se uma suposta “ideologia de gênero” nas políticas educacionais [2], o pretenso perigo de uma conspiração comunista (“nossa bandeira jamais será vermelha”), a defesa da ampliação do porte de armas de fogo, menções difusas a um Cristianismo de cunho messiânico e, de lambuja, a abjeta apologia da tortura e do Golpe Civil-Militar de 1964.
Prato cheio para a anárquica zoeira na internet, em que pipocaram memes e mais memes para se degustar acompanhando o espetáculo tragicômico. Passada a graça e a ressaca, fica patente, tanto para os pró como para os contra impeachment, a postura pouco decorosa de numerosos parlamentares em relação à gravidade do tema debatido. Fica, porém, mais evidente o abismo entre pautas mais progressistas e um ideário conservador [3] de expressivos setores da sociedade. Por mais que tenha se discutido nos últimos dias o quão o voto para o Legislativo não seja eleitoralmente tão representativo [4], é inegável que grande parte das falas mais conservadoras não podem ser entendidas como folclóricas, visto que encontram grande audiência e aplauso entre cidadãos de diversas classes sociais. Prova disso são as potentes votações de congressistas, como Marco Feliciano (Partido Social Cristão-SP) e Jair Bolsonaro (PSC-RJ). Se as bandeiras que empunham são menos a vocalização de velhos e enraizados preconceitos brasileiros do que uma enérgica reação aos movimentos LGBTTT, feminista e negro ascendentes nas últimas décadas – com alguns acenos das presidências do Partido dos Trabalhadores –, isso são outros quinhentos.
De todo modo, o fosso entre a sociedade civil mobilizada em prol dos direitos humanos e boa parcela da população brasileira foi icônica e irreversivelmente exposto na noite do dia 17. Choque de realidade para uns, constatação banal para outros. Basta lembrar que mesmo tendo em mãos uma das maiores bases aliadas do presidencialismo de coalizão, em 2011, Dilma não conseguiu aprovar no Legislativo o projeto de distribuição de materiais didáticos anti-homofobia, canhestramente apelidado de “kit gay”, por veto de políticos conservadores que compunham a própria e heterogênea bancada governista [5]. Isso joga luz no quanto o distanciamento em questão, talvez menos explícito durante o auge de popularidade dos governos petistas, tem de longa duração, sendo mais profundo e duradouro que a estrita – e já clichê – polarização entre “coxinhas” e “petralhas”.
O que fazer, contudo? Não estaríamos pregando apenas para convertidos? É possível partir, com esperanças, para o diálogo, em um ambiente tão rarefeito no dia-a-dia?
Frente a um dilema como esse, é válido recorrer aos clássicos, como defendia o escritor italiano Italo Calvino [6]. Não por eles serem oráculos de verdades imutáveis ou uma autoajuda edulcorada. Pelo contrário, em virtude do vasto manancial que nos oferecem para serem revisitados e reinterpretados, conforme as diferentes demandas e inquietações de diferentes sujeitos e épocas. Nesse sentido, a obra-prima Um dia muito especial (Una Giornata Particolare, 1977), do cineasta italiano Ettore Scola (1931-2016), quiçá seja pertinente para se refletir sobre como dialogar politicamente no cenário brasileiro atual. No mínimo, é garantido um cinema de grande beleza e sensibilidade [7].
Nas cenas iniciais, somos confrontados com uma rica documentação de cinejornal dos rituais fascistas – com suas disciplina e militarização, massificadoras – por ocasião da visita de Hitler à capital italiana. Em seguida, adentramos em um apartamento de uma família de classe média e adepta do fascismo, que acordava naquele 6 de maio de 1938 – o que está em jogo é: como italianos comuns viviam aqueles tempos sombrios e nada comuns [8]? Aderiram ao fascismo com ardor ou por comodidade? Conseguiram resistir a ele no cotidiano? Como?
Enquanto o marido e os filhos se preparavam ansiosamente para o histórico encontro entre o Duce e o Führer, a esposa Antonietta (Sophia Loren) vivia um dia como outro qualquer, dando conta dos afazeres domésticos e demonstrando certo enfado acumulado com os desmandos e a infidelidade do cônjuge. Se sua família e quase todo o prédio saía entusiasticamente para participar daquele “dia muito especial”, a mulher ficou em casa e se relegou à banalidade das tarefas rotineiras, que a esperariam uma hora ou outra. Mal sabia o que a aguardava.
Entre o cansaço e o desânimo, a dona de casa não conseguia engatar o seu trabalho. Até que um fato inesperado altera o rumo das coisas: seu passarinho de estimação subitamente foge e pousa no apartamento de um vizinho. Mais surpreendente ainda, de um vizinho que, como ela, não havia se somado à parada fascista.
Do outro lado do conjunto habitacional, encontramos o oposto simétrico da conservadora e convencional Antonietta: Gabriele (Marcello Mastroianni), um intelectual e radialista homossexual perseguido pelo regime, que cogitava o suicídio. Todavia, quase em tom de fábula, o voo do passarinho simboliza a libertação que o implausível encontro entre extremos viria a significar para os dois solitários.
A partir desse contato inicial, vai se desenrolando, aos poucos, uma fidedigna experiência de troca, para ambos. Começa com o estranhamento mútuo, mas o empréstimo de um livro e uma hilária dança de rumba já quebram o gelo inicial. Um afeta e se deixa afetar pelo outro. Fluindo naturalmente ao longo de um único dia, entre um café e a retirada de roupas no varal, ambos se tornam mais íntimos. Muitas cenas de humor pontuam essa aproximação, como quando o jornalista inusitadamente começa a andar com a patinete de um filho de Antonietta no apartamento da mulher [9]. As esplêndidas atuações da dobradinha Loren-Mastroianni fazem vibrar cada pequeno gesto e feição na gradual empatia que vai se estabelecendo [10], em contraste com o zumbido uníssono que constantemente ecoa da transmissão radiofônica da celebração nazifascista.
Entretanto, seria simplista se esse percurso de transformação se desse sem rusgas, tensões e mal-entendidos. Antonietta se arrepende de ter se aproximado demais de Gabriele, especialmente quando a zeladora do condomínio a informa, com ares de censora, dos boatos sobre a homossexualidade do vizinho. Já o homem se espanta ao ver o bordado que a dona de casa fizera em homenagem a Mussolini e com algumas concepções fascistas redutoras da liberdade feminina que ela endossava. Esses “tilts ideológicos” esboçam uma crise e um afastamento entre eles, afinal “como ele(a) pode ser boa pessoa, sendo meu(minha) adversário(a)?”. Atração e repulsão se mesclam nesse processo, ao fim do qual, no entanto, cada um supera suas angústias, coloca em xeque seus preconceitos e aprende a enxergar o outro como humano. Uma frase lapidar disso é a fala do locutor, inquirido por que se opunha ao regime é: “Não acho que o vizinho do sexto andar [referindo-se a si mesmo] é antifascista, mas que o fascismo é anti-vizinho do sexto andar”. Recusam-se estereótipos, emerge o humano. A repercussão dessa desconstrução em termos políticos é substancial, pois Antonietta começa a repensar sua adesão resignada ao regime autoritário e Gabriele a compreender que sua oposição à ditadura, tolhida por todos os lados, pôde encontrar terreno fértil onde ele menos esperaria.
O filme – cedendo à tentação do spoiler – não acaba em happy end. Mas, de forma alguma, a giornata particolare das personagens principais é um espasmo, um carnaval fora de época, um sonho de uma noite de verão. A impressão que temos ao final é que o dia de aventura dos vizinhos é um revide subterrâneo e silencioso no ódio e na ordem estabelecida, só vindo a frutificar na posteridade. Ainda viria a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, podemos imaginar, Antonietta já não suportaria o Eixo.
Concentrado em menos de 24 horas, o processo de convivência e intercâmbio entre opostos ganha no filme uma dimensão simbólica e vertiginosa, o que não o inviabiliza de ocorrer mais lentamente. Isso talvez se aplique para a longa caminhada que a defesa de direitos civis, sociais e difusos tem pela frente no Brasil. Embora nos embasbaquemos com o risco de retrocesso autoritário, é preciso manter a espinha ereta, o coração tranquilo e ter ciência de que, se muito já foi conquistado na área de direitos humanos desde a redemocratização, isso se deu a duras penas e com a intensa mobilização de uma miríade de grupos sociais. Portanto, desprezar a interlocução com quem não adere a essas causas, ou sequer as conhece e compreende, não parece ser a melhor estratégia.
A atual crise política no país já tem muitas datas marcantes, que hão de seduzir o futuro historiador. Em março, o 4 da condução coercitiva do ex-presidente Lula, o 13 das manifestações pelo impeachment, o 16 do vazamento do áudio entre Lula e Dilma sobre o termo de posse para a Casa Civil e, agora, o 17 de abril da Câmara. Porém, essa gritaria toda fica pequena diante de um bastante utópico [11] “dia muito especial”, por baixo dos holofotes da mídia e da História dos grandes eventos políticos. Ele sequer seria um dia, mas um complexo, paulatino e cotidiano processo de diálogo e de disposição à empatia. Com idas e vindas, como é próprio das relações humanas. Com comprometimento e riscos. Mas, de profundo amadurecimento na forma de se relacionar com a alteridade na política, a esfera da divergência e da interlocução, por excelência – dentro de limites minimamente democráticos, é claro; logo, não se propõe aqui o diálogo com pessoas reiteradamente intolerantes e verbal ou fisicamente violentas… deixemos isso para o setor da caridade religiosa.
Esse tipo de militância – se é que pode ser chamado assim – há de ser taxado por alguns de inocência, passividade diante do momento presente ou de atitude de “isentão”. Por outro lado, ele talvez sugira uma forma de farejar alguma esperança, em meio ao caos, para o insondável futuro político, a médio e longo prazo. Como diria um grande poeta, que não merece ser acusado de “vendido”, não nos afobemos não, que nada é tão pra já…
José Bento de Oliveira Camassa é Graduando em História pela Universidade de São Paulo. Ex-iniciando científico no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), sob orientação do Professor Doutor Sérgio França Adorno de Abreu (Departamento de Sociologia da USP). Membro da Comissão Editorial da Revista Epígrafe (periódico acadêmico discente editado por graduandos em História da USP) e colaborador do blog do Projeto CINEGRI, projeto de extensão do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP (NUPRI-USP).