Hoje falo de referência (ou da falta dela). Decididamente, estamos perdendo a referência. A constatação não é minha; é de Lenio Streck e Jacinto Coutinho. Dizem os mestres, respectivamente:
“Se você chamar um copo d'água de ônibus, quando você tiver sede, pode ser atropelado. A sua autonomia termina na sua esquizofrenia. (…) Assim como você tem sua autonomia no cotidiano e não quer ser chamado esquizofrênico por trocar o nome das coisas, também no plano das práticas jurídicas, nós temos uma dogmática, nós temos conceitos. Eu não posso transformar homicídio em estelionato. Uma interpretação tem que ter algo, você não pode inventar as coisas.” [1]
“É isso, enfim, que estamos perdendo, porque cada um diz o que quer, a qualquer hora; e como bem entende. Como resposta, o que aparece hoje de mais sobressalente em um quase vazio de referência é o discurso dos justiceiros, que se põem a falar em nome do bem. È sempre em nome de um deus, da verdade, do bem, que esse tipo de coisa acontece.” [2]
Com ambos, como se vê, aprendi que “não posso dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” [3]. Infelizmente, porém, não é isso que os famigerados (cu)r(si)nhos (preparatórios?) e manuais fast food têm ensinado. Basta ver, por todos, o que disse a delegada responsável pela investigação do caso que envolve a prática de estupro contra uma adolescente, no Rio de Janeiro, após a revogação da prisão preventiva de um dos jovens, que é jogador de futebol: “Isso não quer dizer que ele seja inocente ou não há nenhuma participação no crime, mas se tornou desnecessário mantê-lo preso” [4].
Não entendi. A Constituição dispõe, no art. 5º, LVII que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; para a delegada, no entanto, ainda não se pode dizer que ele é inocente. Ah, não? E o referido art. 5º, LVII, da Constituição, Doutora? Tempos difíceis. É preciso ser duro com isso; e dizer com todas as letras: a delegada errou! Ela não poderia ter pedido a prisão preventiva estando ausentes os requisitos autorizadores da prisão cautelar; isso é elementar! Em síntese: ela prendeu para investigar (ou para fazer o “passarinho cantar”). Faltou-lhe, por evidente, aquilo que funda a ética de todas as sociedades democráticas: vergonha! [5] Por faltar-lhe isto – que, em minha opinião, é o referencial mais importante em qualquer pessoa – sobrou-lhe insensatez (confundida com coragem) de vir a público desrespeitar a Constituição.
Por isso, este texto deve ser lido como uma ode à vergonha, afinal, como dizem Jacinto e Calligaris, respectivamente, “a vergonha abre a possibilidade que você vá para o mundo mudar você” [6]; “ela nos convida a resgatar a nossa dignidade com novas ações e a voltar para o mundo de cara lavada" [7]; ela nos causa mal-estar e impede-nos que saiamos às ruas “falando qualquer coisa sobre qualquer coisa”, como fez a referida delegada.
Sendo uma agente garantidora de direitos fundamentais, a delegada jamais poderia ter sucumbido aos apelos da sociedade e da mídia. Ora, não é porque a Constituição não interessava, naquele momento, que ela poderia ser descumprida. Pelo contrário: é na pior violação – nos piores momentos – que a Constituição deve se fazer ainda mais presente. Infelizmente, não é o que tem acontecido ultimamente. Assim, a Constituição, que deveria ser a Lex mater, como se costuma dizer, tem sido uma mera “carta de intenções”. Aliás, a bem considerar, poder-se-ia dizer que a Constituição até tem sido aplicada; mas “somente quando interessa”, é dizer, para os amigos: a Constituição; para os inimigos, o juiz Moro. Este é o ponto fulcral que pretendo criticar.
Ora, ninguém nega a gravidade do crime que foi covardemente praticado contra a jovem no Rio de Janeiro. De fato, a cultura do estupro é, lamentavelmente, uma realidade; triste realidade, diga-se de passagem. Mas, convenhamos: isso não nos permite suspender a Constituição. Ou será que permite? Por exemplo: eu considero o Governo Temer sem legitimidade. Inclusive participei do livro: A Resistência contra o Golpe de 2016 (o qual aproveito para divulgar) [8]. Mas isto não me permite concordar, por exemplo, com o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, que – contra a presunção de inocência – afirmou o seguinte: “Faço o alerta de que a nomeação de investigados contraria os anseios da sociedade e não deveria ser feita.” [9]
Vários são os motivos pelos quais discordo da supracitada afirmação. Primeiro, porque “anseio da sociedade” é uma expressão que sofre de “anemia semântica” [10], assim como ocorre, por exemplo, com a “vontade da norma”. A propósito, a única virtude da vontade da norma como forma de se atingir os anseios da sociedade está – e aqui estou parafraseando Eros Grau – em que ela conduz a uma proposta de exercício de ciência cooperativa, entre advogado, psicólogo e kardecista – porque, se a norma estiver morta, para captarmos sua vontade deveremos contar com o auxílio de um kardecista [11].
Ironias à parte, o fato é que para discordar da fala do Presidente da OAB, destacaria apenas que, se eu concordasse com a sua afirmação, teria que dizer que a nomeação do Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Cargo de Ministro também era ilegal, o que não é verdade, como já tentei demonstrar no referido livro “A Resistência ao golpe de 2016” [12]. Ora: se a presunção de inocência vale para os amigos, ela também deve valer para os “inimigos”. Como ensina Prado: “a presunção de inocência é responsável por garantir a incerteza que deve presidir todo o processo penal” [13]. Por isso, se vale para um, deve valer para todos; mas a todos, mesmo (até para o Deputado Jair Bolsonaro). Democracia é isso!
Ou seja: por mais que queiramos a queda do governo Temer, em face da sua ilegitimidade, por mais que não suportemos os discursos autoritários e discriminatórios do Deputado Jair Bolsonaro, o fato é que, com todo respeito aos que entendem de modo diverso, penso que não deveríamos “comemorar” a violação à presunção de inocência pelo fato dela ter “mudado de lado”, digamos assim. Ora bem: neste jogo de violações à Constituição, a “vitória” de um lado ou de outro será sempre a derrota da democracia processual.
Isto, a toda evidência, fere de morte a autonomia do direito [14], dando lugar a um mundo de moralistas, onde muitos – ou quase todos – pagam pelos “pecados” de hipócritas que não se aguentam, porque o padrão que impõem aos outros nunca é o padrão que utilizam para si próprios [15]. Basta lembrar, com Coutinho, que “os maiores mafiosos vão à missa todos os domingos, quando não todos os dias e, na porta da igreja, tramam os mais terríveis crimes; os grandes defensores da moralidade (visite-se, por exemplo, as salas dos Tribunais, nos julgamentos dos crimes contra a liberdade sexual!), não raro são infatigáveis pervertidos” [16], e assim em diante.
Por isso, não basta se ter a previsão formal da presunção de inocência se ela não ganha vida como deveria. Não basta, portanto, à presunção de inocência a mera referência constitucional, como se fosse um poema belo de ser lido, mas difícil de ser posto em prática [17]. Se não incorremos naquilo que eu estou registrando como “Presunção (Geni) de inocência”, a qual, em suma, trata-se do seguinte.
Geni – diz a canção – servia apenas para apanhar; é(ra) boa pra cuspir; ela “dá(va) pra qualquer um”. Geni não servia para nada. “Maldita Geni!” Eis que um dia, a cidade, apavorada, se quedou paralisada, quando o comandante de um Zepelim reluzente resolveu bombardear a cidade. “Mas posso evitar o drama” – diz o Comandante na canção – “se aquela formosa dama esta noite me servir”. Essa dama era Geni. Logo ela – que não servia para nada –, tão coitada e tão singela, cativara o forasteiro. Geni – agora – era a salvação: de maldita para bendita! A cidade em romaria foi beijar a sua mão; o Prefeito de joelhos; o Bispo de olhos vermelhos e até o banqueiro com um milhão, enfim, todos gritavam que Geni, agora, era a salvação: – “Vai com ele Geni, vai Geni. Você pode nos salvar! Bendita Geni, diz a canção.
Foram tantos os pedidos, que Geni entregou-se ao Comandante; e ele lambuzou-se a noite inteira, até ficar saciado. Mas nem bem amanhecia, o Comandante partiu numa nuvem fria. A cidade estava salva; logo raiou o dia e Geni… não mais servia! Então a cidade em cantoria voltou a bradar: “Joga pedra na Geni; ela é feita para apanhar; ela é boa para cuspir; ela dá pra qualquer um. Maldita Geni! – assim encerra a canção.
E o que se retira disto, inicialmente, transportando tal pensamento para o Direito, é que a presunção de inocência, no Brasil, tem sido tratada como a Geni, isto é: para os amigos, bendita presunção de inocência; para os inimigos, maldita presunção de inocência. Daí me veio a inspiração: presunção (Geni) de inocência! Foi o que se observou, por exemplo, com a decisão da Suprema Corte que decretou a prisão preventiva do Ex-Senador Delcídio do Amaral; e a decisão da mesma Suprema Corte que negou a prisão preventiva em face de Renan Calheiros, Eduardo Cunha, José Sarney e Romero Jucá. Qual o motivo da distinção de tratamento?
Ora, a Constituição – lembra-nos Batochio [18] – não permitia (e ainda não permite) prisão processual de parlamentar. Ela, portanto, a Constituição, também deveria ter sido aplicada ao caso do Ex-Senador Delcídio do Amaral. Pegando o gancho da canção Geni e o Zepelim, poderíamos dizer que a Suprema Corte, neste caso, assim como a delegada responsável pela investigação do caso de estupro coletivo e o próprio Presidente da OAB jogaram uma “pedra” na Constituição e na presunção de inocência!
Daí a pergunta que se coloca é a seguinte: a Constituição pode ser descumprida quando não ela não “convém”? Ou o ativismo judicial é sempre ruim? A resposta é sim! o ativismo judicial é sempre ruim (Streck) [19]. E o melhor exemplo de demonstrar isso é através de Érico Veríssimo, no seu clássico “Incidente em Antares.” Era comum, entre os antares, diz Veríssimo [20], o debate acerca de qual ditadura seria melhor: se a de direita; ou a de esquerda. Ora, ditadura é ditadura. Seja ela de direita ou de esquerda será sempre ruim, e ponto! Assim é o ativismo judicial. Seja para beneficiar, seja para prejudicar, será sempre ruim à Democracia.
Para prejudicar, o ativismo judicial é ruim porque ele faz com que tenhamos algo que é incompatível com a democracia: a figura de juízes heróis. O juiz Moro está aí – vivo – para demonstrar. Pergunte a qualquer um de seus fãs ou admiradores se queriam ser julgados pelo seu herói. Evidente que não. Mas, por outro lado, a pergunta sobra é: e na hipótese de se beneficiar? Por que o ativismo judicial seria ruim nesta situação? Simples. Isso permitiria, por exemplo, que, por bondade, os (verdadeiros autores) do estupro cometido contra a jovem no Rio de Janeiro ficassem impunes. Por isso, encerro com Agostinho Ramalho: “Que Deus nos proteja da bondade dos bons!”
Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).