Um certo Mouro[1] disse uma vez que “o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade”[2]. Muitos anos depois, um grande militante e estudioso, refletindo sobre essa afirmação a respeito do direito, buscou explicá-la do seguinte modo: “não se trata de elaborar a norma justa para depois lutar para que a sociedade a cumpra, pois assim como não é a consciência que determina o ser social, mas este ser social que determina a consciência, não é o direito que muda a sociedade, mas as mudanças sociais que alteram o direito”[3].
Mas, cuidado! Essas afirmações poderiam soar ofensivas ao jurista que, como Isaías Caminha[4], por ostentar o majestoso título de “Doutor”, anda sob a chuva sem que seja por ela tocado. Afinal, não são poucos os assalariados (ou associados, ou explorados, enfim) que ainda acreditam no mito do profissional liberal que desempenha “função essencial à justiça” – seja lá o que isso queira dizer.
Pois bem, fato é que o direito, entendido aqui como regulamentação jurídico-normativa, cujo pressuposto é o sujeito universal igual e livre, assim como é incapaz de promover mudanças sociais, tampouco está credenciado a barrar as eventuais alterações fáticas. Em resumo, o direito chega sempre depois.
Essa noção, que nada tem de complexa, contribui para esclarecer que nos momentos de crise do capitalismo a regulação dos direitos sociais, que já não significava nada, atinge o seu limite, isto é, uma norma moralmente justa e juridicamente assegurada não resiste à necessidade de expansão e acumulação do capital. A norma jurídica assume sua verdadeira característica, ou seja, assim como nasceu a partir da representação, deteriora-se como representação desprovida de conteúdo substantivo. A ideia surge e se encerra nela própria, revelando a verdade real[5].
Por isso, falar de fantasias como o “princípio da proibição do retrocesso social”[6] em tempos como o atual é deixar-se levar por um horizonte alegórico e mágico de crenças forjadas na ilusória ideologia jurídica.
Contra as barbáries demandadas e criadas pelo capitalismo não há princípio, norma ou constituição que resista. Assim como lutar pela extinção do direito de herança sem tocar na propriedade privada é atuar sobre a consequência ou sobre os efeitos de um fato, querer barrar as medidas de austeridade acentuadas pelo governo usurpador de Michel Temer (PMDB) invocando as brumas místicas de preceitos constitucionais como o princípio da proibição do retrocesso social significa, na verdade, brigar nas sombras e com as sombras. Nas palavras da inabalável força de Rosa Luxemburgo, a questão se coloca da seguinte maneira: “aparecem desde o começo como o primeiro sintoma do reflexo da política liberal sobre nossos camaradas, desta política que em todas as épocas, sabe-se, crê poder quebrar as muralhas da reação com o som das trombetas da grandiloquência parlamentar”[7]. No caso, a aposta na grandiloquência judicial apenas faz despolitizar ainda mais a resistência a essas ofensivas do capital.
É preciso, como diz o dito popular, “cortar o mal pela raiz”. Na iminência da reforma na legislação trabalhista e previdenciária que amplia os cortes iniciados por Dilma Rousseff (PT) em aposentadorias e outros benefícios do INSS, eleva a jornada de trabalho e extingue ou desobriga a concessão de certos direitos trabalhistas, não faltam juristas bem intencionados que lutam no mundo das ideias[8].
O que é uma cláusula pétrea? Já parou para pensar nesse deslumbrante idealismo jurídico? A mudança que atinge o elemento fático da vida material e as demandas que surgem desse campo objetivo não apenas são suficientes para derrubar uma presidenta como são capazes também de passar por cima do art. 60, §4º da CF/88.
A verdade é que o retrocesso social não se proíbe com instrumentos jurídicos. Quando a realidade é transposta para a ideia sem que haja uma verdadeira correspondência entre uma e outra, a representação daí resultante torna-se um elemento relativo que permite uma enorme quantidade de posições.
Hoje, no Brasil e em várias partes do mundo, o retrocesso social é experimentado, vivido pela classe trabalhadora. O direito, que chega sempre depois, sem perceber, absorve o retrocesso quando passa a expressá-lo juridicamente ou simplesmente regulá-lo, como no ingresso da polícia no domicílio sem autorização judicial (RE 603616), na execução da pena em segunda instância (HC 126.292), na restrição da prescrição do fundo de garantia (ARE 709212), na imposição de requisitos de auxílios previdenciários (MP 664/2014), na criminalização das lutas sociais (Lei 13.260/2016), na legitimação da precarização do trabalho (PL 4.330) etc.
O retrocesso social é parte da realidade objetiva e vincula-se à desestabilização das bases materiais da acumulação capitalista que permitiram tal ou qual concessão legal burguesa. Ou por acaso a tão enaltecida Constituição de Weimar sucumbiu sob as mãos do nazi-fascismo apenas porque lhe faltasse um dispositivo legal que vedasse o retrocesso social? A resistência aos ataques contra a classe trabalhadora não se encontra num princípio jurídico, exceto na cabeça do jurista que se debate com sua razão. “A classe trabalhadora […] não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas”[9].
Enquanto alguns lutam no mundo das ideias, outros ocupam as trincheiras da vida real. É ao lado destes últimos que se torna possível subverter o retrocesso social que está em voga desde a origem da sociedade capitalista, com avanços e refluxos, estabilidades e crises, mas sempre com a permanência e tolerância da desigualdade material.
A única garantia possível contra qualquer retrocesso ou de qualquer avanço social é a organização intransigente da classe trabalhadora. Ao invés de tapar o sol com a peneira, brandindo princípios jurídicos contra a crise do capitalismo, fariam melhor os juristas ao enxergar os estreitos limites do direito burguês – e se engajar não apenas na luta contra o “retrocesso social”, mas pela revolução social que ponha fim às exploratórias relações sociais de produção sob as quais vivemos.
Gabriel Landi Fazzio é Militante, estudante de Direito da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD) e auxiliar administrativo paralegal no escritório Crivelli Advogados Associados.
João Guilherme A. de Farias é Militante, jornalista, estudante de Direito e pesquisador da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD).