Pense nos teus filhos correndo, noite louca, no meio de um matagal, pense em tiros, pense em muitos tiros, que rasgam os corpos, que perfuram, que fazem esguichar o sangue no chão duro. Pensem no desespero de quem corre da morte, que sabe que é certa; pensem em teu filho correndo de uma força de ocupação, pensem nisso, pensem, no meio da noite, as ruas fechadas por todos os lados, o cerco à bala, encosta vagabundo! Tiro, tiro pra todo lado, tiro que deixa a roupa encharcada de sangue, que explode a cabeça, que faz o menino ser quase cortado de bala, rajada, tiro, encosta, duzentos gramas de cocaína, trezentas, ninguém vai escapar. Tiro, desliga essa porra, quem filmar vai morrer, filmou e morreu. As mães saindo na madrugada para catar seus mortos, para beijar seus mortos, para uivar de dor pelos seus mortos.
“Resistiram e obrigaram a guarnição a revidar o injusto ataque, resistiram à ordem de prisão, abrindo fogo contra a viatura, não logrando acertar nenhum disparo, mas obrigando a uma pronta de moderada reação. Guerra Contra As Drogas, perigosos traficante, destruidores das famílias honradas foram abordados e mortos pela polícia militar, que não perdoa quem reage, basta não reagir para não morrer”.
Tuas mãos tentando reanimar o filho, você só tinha a ele e vice-versa. O pai sumiu, desapareceu, muitos ali nasceram de estupros que ficaram por isso mesmo, tua saia curta “precipitou” a ação dos machos que te viam e de quem você não fugiu, mereceu. Mereceu. Mortos no chão. É fácil vir a turma dos direitos humanos, atrás de mesas e no ar condicionado, quero ver ir enfrentar a na madrugada. Parabéns ao governador e à sua polícia. Quem atira para matar tem que ser baleado para morrer. Não havendo provas de excesso na conduta dos policiais, arquivem-se os autos. Sobrou teu neto, filho de teu filho, esse que você não deixou ele negar.
Pense na solidão, agache três vezes. Agache. Agache e mostre os buracos de teu corpo, mulher. Pode ter celular na tua vagina, sua “puta”. Cocaína no seu cú, “traveco maldito”. Agache. Mostre. Teu filho foi pego com vinte papelotes e oitenta e sete reais. Ele trabalha? Como ele tem esse dinheiro em seu poder? Filho de preta faxineira, quem? A droga estava acondicionadas em eppendorfs e prontas para a ilícita comercialização. No ponto de tráfico, o réu não soube justificar ao miliciano a origem do dinheiro, a mãe pode ser médica, advogada, empresária, mas ele, ele, não, ele é nada. Não comprovou ocupação lícita. Disse que estudava, mas era escola pública, onde ninguém estuda. Preta faxineira, preto cotista.
A sociedade ordeira não pode ficar à mercê da impunidade de pequenos criminosos, que compõem a malha do tráfico. Tiro, o elemento portava um revólver calibre 38, com numeração raspada. Nossa moto-link traz imagens do teu filho.
Teu filho. Teu filho. Teu filho.
Por um minuto que seja de sua vida, pense nisso.
Pense nisso quando for defender a Guerra Contra as Drogas.
Roberto Tardelli é advogado e Procurador de Justiça do MPSP aposentado.