Sentado, com as duas mãos no rosto, cotovelos nos joelhos e aos prantos – assim recebi a notícia de que Janaína fora submetida à cirurgia de laqueadura contra a sua vontade.
Que espécie de pessoa seja eu, não poderia dizê-lo. Mas, seja lá como for, uma qualidade, ao menos, posso abonar a mim mesmo: a de não ser Djalma Moreira Gomes Júnior e Frederico Barrufini – os (principais) responsáveis pela laqueadura em Janaína.
Deixais que a desonrassem-na, que a desmoralizassem; deixais que a humilhassem-na, que a vilipendiassem; tudo isso porque Janaína “era vista constantemente andando pela rua com sinais abusivos de álcool e drogas”. Ora essa, como se os livros simplificados que possibilitaram a aprovação de ambos, em seus cargos, não fossem drogas muito mais abusivas e letais do que aquelas ingeridas por Janaína.
Em suma, não reconheceram aquilo que, segundo Kant, é o mais caro a qualquer pessoa: ser um fim em si mesmo e, por isso, não poder ser relativizado, dado que a ninguém – absolutamente ninguém – é autorizado utilizar outrem como um meio para alcançar qualquer fim – seja ele qual for. Insustentável, por isso, o argumento de Frederico Barrufini, de que “somente a laqueadura poderia proteger a vida de Janaína e dos filhos”.
Eis por que recuso-me – veementemente! – a chamar Frederico Barrufini e Djalma Moreira Gomes de Promotor de Justiça e Juiz de Direito, respectivamente.
Afinal de contas, a eles, pelo lugar que ocupam, foi dada a missão primeira de garantir a dignidade da pessoa humana, mas ela (ou seria melhor dizer: elas, Janaína e a dignidade da pessoa humana) foram transformadas em um nada, dado que eles não responderam corretamente à função que lhes foi confiada pela nação.
Em suma, tornaram pó o juramento que fizeram de respeitar a Constituição! E toda essa degeneração, esse infortúnio, essa ruína veio justamente daqueles cujo poder foi concedido por nós, cidadãos. Numa palavra: imperdoável!!!
Imperdoável, ademais, porque fizeram com Janaína carregasse, para sempre, a pior vergonha – a mais humilhante e radical – aquela que, segundo Calligaris, nos afasta da coletividade, sem retorno: “a vergonha de sermos quem somos.”
Nesta fria madrugada, aliás, enquanto escrevo este texto, uma palavra não sai de minha cabeça: genocídio! Mas como assim, genocídio? – indagará o leitor.
Responderia eu que, por genocídio, não estou a referir-me acerca daquele cunhado por Rafael Lemkin, em 1944[1]. Falo de outro. E por incrível que pareça, pior – aliás, muito pior; aquele que, segundo Warat, é o mais desgraçado de todos os genocídios: “o que faz sentir aos excluídos culpados por estarem vivos”[2].
Pois o que Frederico Barrufini e Djalma Moreira Gomes fizeram foi justamente isso: uma tentativa de desgraçamento da vida de Janaína, por meio de uma decisão que ficará na história deste país como uma das mais execráveis de nossa República. E tudo isso, pasmem, numa democracia.
Democracia que, quando ouviu de Janaína que ela não sabia ler, como resposta deu-lhe um documento para que ela… assinasse. E neste documento uma suposta autorização dada por ela que, pasmem, não sabe ler.
E quando perguntada pela jornalista do Fantástico, se todos aqueles que participaram do processo indagaram-na sobre seu interesse em não fazer a laqueadura, ela respondeu com as palavras que hão de atormentar eternamente os pesadelos de Frederico Barrufini e Djalma Moreira:
O link está na nota de rodapé.[3] Leiam com seus próprios olhos. E se quiserem saber por que a palavra de uma mulher negra não teve voz, leiam sobre o feminismo; leiam Chimamanda Ngozi Adichle, Djamila Ribeiro, Márcia Tiburi, Luciana Boiteux e, claro, Dororidade – de Vilma Piedade.
A resposta para a voz de Janaína não ter sido escutada (ou ter sido calada) está na página 17 do livro. Dororidade é “a dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele. Quanto mais preta, mais racismo, mais dor”.[4] Ou seja, quanto mais preta, menos anestésico local ao parir;[5] quanto mais preta, mais… laqueadura. Vida dura.
Como diria Bia Ferreira, em minha música preferida – cota não é esmola: Experimenta nascer preta na favela pra você ver!?
Dedico este texto a todas as mulheres que me ensinaram – e ensinam – a importância do feminismo, em especial à minha irmã Marielle Franco. Do seu irmão Djeff Amadeus. Eterna saudade.
Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).