Imagem: O Conto da Aia de Margaret Atwood/Pinterest
Em 2018, quatro cenas de Estado atravessam a vida das mulheres latino-americanas e chegam à discussão pública. A Suprema Corte brasileira decide que as mulheres gestantes ou mães de filhos e filhas de até doze anos – ainda não condenadas – cumprirão prisão domiciliar. No mesmo país, um membro do Ministério Público pede judicialmente que Janaína Aparecida Quirino, uma mulher negra e usuária de drogas, seja esterilizada compulsoriamente, um magistrado acolhe e o sistema de saúde realiza a laqueadura no momento do parto. Na Argentina, mulheres com lenços verdes conquistam ampliação do direito ao aborto legal na Câmara dos Deputados.
Na sexta feira da semana que vem, dia 03 de agosto, inicia-se a no Supremo Tribunal Federal a audiência pública sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, discutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSol). Paralelamente à audiência, inspiradas no verde das argentinas, feministas de todo o país mobilizam o Festival pela Vida das Mulheres, no Museu da República, também em Brasília. Do lado de fora dos prédios públicos, as mulheres dirão suas palavras a respeito dos seus corpos: Nem morta/ nem presa por aborto/Pela vida das mulheres. Este é o emblema do Festival.
Além da presença do Estado, os eventos demonstram a concorrência de outra ficção que interpela a vida das mulheres: a maternidade. O Estado necessita controlar os usos e sentidos da maternidade. São ficções porque um ou outro não podem ser precisados, medidos, mas se exteriorizam cotidianamente nos corpos das mulheres. A jovem mãe esterilizada à força após o parto demonstra isto, a concretude de instituições imaginárias e violentas na existência das mulheres.
Estado e maternidade são instituições que caminham juntas, compartilham de uma disputa permanente de acionamentos e significados, e a maternidade é um componente estrutural do Estado. As quatro situações que provocam este texto são exemplos da forma contraditória que estas instituições são mobilizadas na vida das mulheres.
Às mulheres presas e mães o Estado não se abstém do controle, não apenas da liberdade mas da maternidade. As pesquisas acerca das mulheres mães encarceradas identificaram[1] que o Estado inicialmente impõe mandamento de maternidade na prisão (serás mãe e apenas mãe) para em seguida gerenciar no corpo a perda do filho e da maternidade, e, a permanência (ampliação) da punição (lactarás, mas não serás mãe). A concessão do habeas corpus coletivo demonstra outra ambivalência, se seria possível conseguir ganhos reais para a vida das mulheres através do Estado, que assegura as desigualdades, culminando em criminalidade, criminalização, prisão – sempre atravessadas pelo racismo – e gestão da maternidade, agora através da prisão domiciliar.
No processo judicial que obrigou a esterilização da mulher usuária de drogas, reconhece-se que a mesma se recusava ao procedimento. Uma das acusações direcionadas a Janaína é de que já seria mãe de cinco filhos. Aqui, nota-se que não se incentiva a maternidade de modo indiscriminado, o Estado não acolhe qualquer maternidade. A violência acometida a Janaína se relaciona com a terceira cena latino-americana, ao confrontar as premissas da criminalização do aborto. Afinal, o que se busca é a garantia da reprodução, as carreiras profissionais dos fetos[2], ou o controle sobre qual maternidade é imposta às mulheres?
A vitória parcial na Argentina enche de esperanças as feministas da América Latina. No país do papa, as jovens ressignificam a estética das zapatistas. Além do medo de que o pleito não prossiga no Senado, a conquista das mulheres argentinas confronta o caso brasileiro. Indaga acerca da possibilidade do avanço de direitos sexuais e reprodutivos pela via legislativa no Brasil e sobre os ecos dos lenços verdes na mobilização política das mulheres e na posição dos ministros do Supremo Tribunal Federal quando julgarem a ADPF 442, que questiona a recepção dos dispositivos do Código Penal que criminalizam o aborto pela Constituição de 1988. Os eventos de 2018 explicitam a relação entre o Estado e maternidade e contraditoriedade de seus discursos e políticas.
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Algumas leitoras se lembrarão d’O Conto da Aia de Margaret Atwood. As que não tiverem lido a obra, poderão ter assistido a produção estadunidense The Handmaid’s Tale (primeira temporada, baseada no livro). Em um momento da versão audiovisual, há uma recordação na qual a personagem Serena Joy – que antes do golpe que funda Gilead era uma intelectual anti-feminista, depois uma respeitável dona de casa – conversa com o marido, que no futuro seria o Comandante, sobre o tema de um artigo que escrevia: “a fertilidade como um recurso da nação”. Esta frase provoca o texto.
Agradeço a leitura atenciosa e as sugestões feitas pelas integrantes do grupo de escrita Verbos Feministas, da Universidade de Brasília.
Ana Laura Silva Vilela é doutoranda em Direito pela UnB.
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