Imagem: EBC
Vivemos tempos temerosos para homens e pedras. E é preciso temer também pelo patrimônio brasileiro.
O fantástico meteorito de Bendegó, a maior pedra vinda do espaço ao território brasileiro, com 5260kg, possivelmente agora está derretida com o incêndio do Museu de RJ. Mesmo Luzia, nosso fóssil ancestral mais antigo, resistiu ao tempo, mas não ao desmazelo do Brasil com sua cultura.
O Museu precisava de pouco para se manter em comparação ao rombo de 8 bi decorrente do aumento de vencimento da monarquia togada brasileira. Monarquia que, diferente daquela que se preocupou em fundar o Museu do RJ, vê-se desprestigiada aos olhos da sociedade, por estar atualmente envolta em lobby para aumentos próprios.
O governo federal fez sua escolha do que era prioridade em seu orçamento. Mas o Museu não estava sob a administração da UFRJ? Ora, e se pode inocentar uma política que desmantela universidades, sufoca-as financeiramente, congela investimentos na área por décadas e faz letra morta a autonomia universitária ao definir os repasses que custearão suas despesas?
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Com Universidades atadas em sua autonomia financeira, não há muitos meios hábeis à disposição para defender do patrimônio da pesquisa, cultura e educação. Como lembra Brotti[1] (2000, p. 80), “a autonomia de gestão financeira é apontada por praticamente todos como o grande limitador da autonomia plena na universidade. Ela é o “gargalo” que estrangula a autonomia universitária.”
Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades.
As conseqüências trágicas decorrentes dos deficitários (quando não dizer ausentes) programas de investimento nos setores da educação, cultura, pesquisa científica é uma infeliz parte da história da política brasileira que resiste constantemente ao fogo.
Aliás, o próprio estrago de natureza incendiária é algo recorrente no patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro, com reflexos também em fatalidades. Ainda é recente na memória baiana o incêndio que destruiu um casarão antigo na cidade tombada de Cachoeira, na região do Recôncavo, fatalizando duas vítimas. Já em São Paulo, o incêndio na Estaçãozinha de Jundiaí, com sua arquitetura centenária em processo de tombamento, mostrou também o quanto a história é relegada apenas aos bastidores mais baratos dos livros ou salas de aula, mas esquecida no plano prático, e mais caro aos cofres públicos, da conservação e segurança preventiva.
O artifício do fogo é um conhecido na história brasileira como instrumento de desconstrução da memória; um modus operandi comum para a consecução de uma política do esquecimento (ANSARA, 2012)[2] cuja tentativa é a de redimir com fogo os males da nação[3].
Como esquecer o reprisado efeito ato de Nero cometido pelo jurista Ruy Barbosa ao determinar a queima dos arquivos que registravam dados sobre a escravidão no Brasil, que, para os estudiosos da negritude e afrocultura, “privou os historiadores futuros de uma fonte de grande importância para a avaliação das proporções da escravidão no Brasil”?![4]
Transformam um país inteiro num puteiro. Pois assim se ganha mais dinheiro.
A lógica da privatização, desregulação, mercadorização e globalização sujeitam às universidades a um paradigma empresarial de necessidade de maximização de rentabilidade cruel[5] que as transforma num mercado e impõe sua lógica: ou dá lucro, ou não vale à pena existir. Foi por essa perspectiva que nos últimos três anos a direção do Museu Nacional recebeu apenas dois terços dos repasses de verbas, mediante corte do orçamento da UFRJ.
Somente um projeto de investimento pautado em orçamento próprio com fins à conservação, segurança e desenvolvimento técnico-científico ao Museu teria salvado-o.
Mas museus não fazem grandes acordos nacionais, não possuem bancada no Congresso e não detêm força política para lobby. Num contexto eleitoral em que estamos na iminência de decidir pelo retorno às concepções próprias dos albores medievais, com candidatos a governantes para os quais a educação e respeito à diversidade da cultura são pautas secundárias, terciárias etc, e a história um conto sob a ótica dos lobos, o patrimônio histórico brasileiro, material e imaterial, passa por um processo sistêmico de falência, numa crônica de tragédias anunciadas.
Luzia e Bendegó não sobreviverão para ver o fim dessa história. Nós permaneceremos como o registro testemunhal de uma política de desmoronamento ético e patrimonial, até, quiçá, sermos também atirados na fogueira do processo de descarte e esquecimento destinado aos obstáculos do retorno do poder político feudal…
Com museus, com tudo!
Lucas Correia de Lima é mestrando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e advogado.
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