Imagem: Agência Brasil
Recentemente, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou, por 18 votos a nove, o Projeto de Lei 6.299, de 2002, também conhecido como “PL do Veneno”. A proposta está pronta para ser votada em Plenário. Na prática, representa uma flexibilização perigosa das regras de controle dos agrotóxicos no Brasil. Entre as “inovações” previstas, o conceito de “gestão de riscos” estaria definido como “o processo, decorrente da avaliação dos riscos, que consiste em ponderar fatores políticos, econômicos, sociais e regulatórios, bem como os efeitos sobre a saúde humana e meio ambiente”.
Não é necessário ser especialista em técnica legislativa para deduzir que os fatores políticos e econômicos serão priorizados em detrimento da proteção da saúde e do meio ambiente. A história já demonstrou onde isso pode levar. A priorização de questões político-militares acarretou na utilização, entre 1965 e 1970, de 45 milhões de litros do Agente Laranja (composto pelos herbicidas 2,4,D e 2,4,5-T) na Guerra do Vietnã. A intenção era desfolhar áreas consideradas úteis ao “inimigo”. Segundo a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na silga em inlgês), o 2,4,5-T teve seu uso proibido pois contém altos níveis de dioxina, que causa câncer e outros problemas em seres humanos.
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Em 1984, uma ação judicial movida por veteranos de guerra norte-americanos contra os fabricantes do Agente Laranja resultou em acordo de US$ 180 milhões para composição de um fundo de reparação de danos. O valor atualizado corresponde a US$ 430 milhões ou cerca de R$ 1,6 bilhão. Mesmo assim, as companhias negaram responsabilidade pelos danos à saúde dos soldados e de suas famílias. Uma das empresas mantém até hoje em seu site, com notas em várias línguas, a afirmação de que “o acervo significativo de evidências sobre humanos relativa ao Agente Laranja estabelece que as doenças dos veteranos não são causadas pelo mesmo”.
Um dos advogados das famílias declarou, à época, que “esperava que o Departamento de Veteranos honrasse as demandas dos afetados e reconhecesse que balas químicas são tão letais quanto as balas de chumbo, apenas demoram mais para matar”. O pleito foi concedido: o Departamento de Veteranos reconhece que certos tipos de câncer (leucemia, pulmão e próstata, entre outros) e outras doenças (como o Mal de Parkinson) são presumivelmente associados à exposição ao Agente Laranja e outros herbicidas durante o serviço militar. Na mesma direção é a presunção de má-formação fetal, também derivada da exposição ao agente.
Avançando para 2017, a Anvisa proibiu a comercialização do Paraquat, um herbicida similar ao Agente Laranja, por meio da RDC Nº 177/2017, por causa do seu potencial mutagênico. Os representantes dos produtores rurais recorreram e conseguiram a liberação do seu uso como dessecante. No Brasil, cerca de 60% do manejo da substância é empregada nessa modalidade, para acelerar o amadurecimento das plantas e facilitar a colheita. Economicamente, o Paraquat é vantajoso ao produtor, pois seu princípio ativo é livre de patente, o que garante um baixo preço ao consumidor final. Ou seja, mesmo com a legislação atual, fatores políticos e econômicos preponderaram sobre os efeitos nocivos do agrotóxico sobre a saúde humana e meio ambiente.
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Como “ponderação”, os utilizadores terão de preencher um termo de conhecimento de risco e de responsabilidade a ser anexado ao relatório agronômico. O documento contém os seguintes avisos: a) evidências indicam que a exposição ao Paraquat pode ser um dos fatores de risco para a doença de Parkinson em trabalhadores rurais e b) evidências demonstram a existência de risco da exposição ao Paraquat causar mutações genéticas em trabalhadores rurais.
Os avisos originais eram mais claros: a) O Paraquat pode causar doença de Parkinson; e b) O Paraquat pode causar mutações genéticas. A mudança não é apenas redacional. Demonstra a permanente tentativa da indústria, conforme retratado no caso do agente laranja, de rotular produtos perigosos à saúde e ao meio ambiente como inofensivos, como meros auxiliares dos agricultores no combate às pragas.
O PL 6.299 diz, em seu artigo 4º, inciso 3º, que fica proibido o registro de produtos que, nas condições recomendadas de uso, apresentem risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente, ou seja, que permaneçam inseguros mesmo com as medidas de gestão de risco. Em um cenário em que um determinado produto, associado a Mal de Parkinson e mutações genéticas, pode ser utilizado mediante a simples assinatura de um termo de conhecimento do risco e responsabilidade, o que podemos esperar para o futuro próximo com a aprovação no novo “PL do Veneno”?
Marco Antonio Delfino é procurador da República e coordenador do Grupo de Trabalho Agrotóxicos e Transgênicos da Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do Ministério Público Federal (MPF).
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