Imagem: El Tres de Mayo, obra deFrancisco de Goya.
Victor Hugo foi um humanista. Os firmes posicionamentos adotados pelo escritor o elevaram à condição de porta-voz de uma geração e também renderam a ele longo período de exílio, durante o Segundo Império, de Napoleão III.
O reflexo desta atuação política e social em suas obras literárias faz com que elas tenham muito a falar ao Direito. O último dia de um condenado [1], publicado em 1829, traz uma das principais bandeiras defendidas pelo autor: a abolição da pena de morte. No livro, o escritor elabora uma verdadeira ode contra a prática, demonstrando que rechaçá-la é uma questão de princípio, conforme já foi assinalado por Lenio Streck. Este tema será, inclusive, retomado por Dostoiévski em O Idiota, devido à influência direta sofrida do escritor francês.
Ao longo da narrativa, Victor Hugo representa o percurso final de um condenado à pena capital. Um dos mais interessantes e intrigantes detalhes da obra é o segredo que gira em torno da história deste condenado. Isso porque Victor Hugo não revela o crime cometido ou a motivação da sentença capital. Sabe-se, apenas, que o condenado não se arrepende de seu crime. Por outro lado, o personagem lamenta que o delito tenha levado o Estado a praticar outro crime – não o de condená-lo à morte, senão o de condenar a sua filha, em breve órfã de pai, ao estigma social.
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Ao não especificar a trajetória do condenado, Victor Hugo nos faz entender que a vedação à pena de morte não se pauta por particularidades do caso ou do indivíduo. A narrativa não apela ao sentimentalismo do leitor, a partir de uma história de vida triste ou sofrida. Tampouco, o seduz com um longo apelo à inocência do condenado. Pelo contrário: o que Victor Hugo nos revela, com maestria, é que, independentemente do crime ou da sua crueldade, a rejeição à pena de morte constitui, antes de tudo, postura humanista (e universalizável). Como não poderia deixar de ser, o livro causou furor na França, em uma época em que a penalização do corpo do condenado ainda consistia em prática comum na sociedade.
Recordemos, neste sentido, da abertura de Vigiar e Punir, em que Michel Foucault fornece um relato cru e sórdido do martírio e da crueldade que envolviam os suplícios públicos que reinaram no sistema penal francês até o século XIX [2]. À época, mais precisamente em 1792, a guilhotina surgia como esperança redentora para “humanizar” as sentenças capitais e torná-las mais equânimes: enfim, o ladrão e o Rei poderiam ter o seu destino selado de idêntica forma [3].
Muitos modos de aplicação de penas capitais se sucederam ao redor do mundo. No entanto, a grande maioria dos países compreendeu por abolir tal prática, aderindo a políticas comprometidas com a dignidade da pessoa humana (embora, na prática, nem sempre com tanta eficiência). Segundo relatório do ex-secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da Organização, cerca de 170 países, dos 193 que compõe a Organização, haviam abolido a pena capital até o mês de junho de 2016 [4]. A pena de morte, no entanto, permaneceu sendo admitida em países como China, imersa em repressões às liberdades individuais, e em diversos estados norte-americanos. Contudo, o relatório de 2015 do Death Penalty Information Center (Washington) identificou uma redução cada vez maior na invocação da medida capital, nos Estados Unidos. A medida, com efeito, torna-se mais controversa naquele país e calcula-se que tenha atingido pico de impopularidade no ano de 2015, devido aos constantes erros judiciais e à incapacidade estatal de executar a pena conforme o esperado pela população [5]. Estima-se que, desde 1973, 156 pessoas condenadas à morte, nos Estados Unidos, já tenham sido inocentadas.
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No Brasil, costuma-se atribuir, simbolicamente, ao caso envolvendo o fazendeiro Motta Coqueiro o último registro de um condenado à morte pela estrutura judiciária. Isso ocorreu ainda em pleno Império, no ano de 1855 (existe divergência relativa aos números, de forma que tal afirmação sustenta-se do ponto de vista simbólico) [6]. O caso Motta Coqueiro se tornou um dos mais sensíveis e conhecidos erros judiciários brasileiros: condenado judicialmente pelo assassinato de uma família de colonos agregados, o fazendeiro recorreu à graça do Imperador Dom Pedro II. O Imperador, no entanto, negou-lhe a graça e Motta Coqueiro foi enforcado em praça pública na cidade de Macaé (RJ). Conta-se que, alguns anos mais tarde, o verdadeiro mandante do delito foi descoberto, junto de provas da inocência de Motta Coqueiro. Consternado pelo ocorrido, o Imperador Dom Pedro II passou, então, a conceder, progressivamente, sua graça a todos os demais condenados à morte, abolindo, na prática, a sentença capital, até que a República terminou por revogá-la em definitivo [7]. O caso Motta Coqueiro, aliás, é retratado no livro Motta Coqueiro ou A pena de morte, escrito por José do Patrocínio e publicado em 1878 [8].
Tudo isso nos aponta que rechaçar a pena de morte é um caminho civilizatório. A Literatura, a História e o Direito já nos deram provas significativas disso. Entretanto, os dias atuais, no Brasil, contêm em si certo alvoroço fetichista em torno da morte violenta “de presidiários e de criminosos”. Desde as mais sanguíneas praças públicas até os frios e impessoais gabinetes palacianos, escutam-se manifestações de regozijo com a possibilidade de se tornar a executar condenados– isso para não se falar nas recentes chacinas que vieram de resultar na morte de uma centena de presos, nos estados da Amazônia, de Roraima e do Rio Grande do Norte [9].
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Ocorre que, se a criação do Direito substitui a vingança privada, parece ser preciso evoluir muito, ainda, para nos eximirmos de certo faro de vingança coletiva (e seletiva): àqueles que (re)afirmam, categoricamente, que “bandido bom é bandido morto”, que desejam “direitos humanos para humanos direitos” (sic) ou que aplaudiram, recentemente, a escalada dos tais “justiceiros”, que resolveram retroceder à condenação sumária, em que a pena corporal foi aplicada no sentido mais literal possível – vale lembrar que a condenação de Damiens, por mais bárbara, derivou de processo judicial. E, antes dos “justiceiros”, já não vigoravam nas ruas os “tribunais de exceção”? [10] Ou, os programas policiais da televisão já não “estouravam” a audiência?
Assim, muito embora escrita em pleno século XIX, a história narrada em O último dia de um condenado segue dramaticamente atual. Observa-se que, no Brasil, o positivo avanço no sentido de limar as penas capitais de nossa estrutura judiciária comum permanece muito distante da prática. Por um lado, o Estado é ausente nas penitenciárias, que se transformaram em “masmorras medievais” [11], nas quais a vida de presos encontra-se à mercê da força e da violência. De outro lado, está o delírio pervertido de parte da nação que acompanhou deliciada, pela televisão ou pela internet, as cenas recentes de decapitações nos presídios, na mais nova versão dos “suplícios públicos”.
Não deixa de surpreender – e de estarrecer –, portanto, que, quase duzentos anos depois de sua publicação, O último dia de um condenado ainda tenha tanto a nos ensinar e a nos fazer refletir em termos de avanço civilizacional. Mais surpreendente ainda seria se esta fosse a única coisa que deixamos de aprender ao longo de todos estes anos…
Dieter Axt é Mestrando em Direito Público na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), roteirista do Programa de TV Direito & Literatura (TV JUSTIÇA) e membro da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL).
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