Foto: Facebook.
No dia 10 de outubro de 2018, houve o terceiro adiamento da sessão do Tribunal do Júri que julgaria o suspeito de assassinar Mário Andrade de Lima. Mário, no dia de sua morte, 25 de julho de 2016, tinha 14 anos e, segundo o relato de várias testemunhas oculares, andava de bicicleta com um amigo no bairro do Ibura, na periferia do Recife, quando colidiu com o veículo de um policial militar da reserva. Em seguida, esse policial teria mandado Mário se deitar no chão, dado-lhe algumas coronhadas e três tiros. O amigo dele conseguiu fugir, e Mário engrossou a estatística de jovens negros assassinados no país; e, no caso, daqueles mortos por um agente que compõe ou compôs os quadros do Estado.
Não falarei sobre o luto ou de sua ausência na morte desses jovens, porque isso tem sido feito incansavelmente pelos movimentos que lutam por justiça nesses casos, muitos dos quais encabeçados pelas mães desses adolescentes, como o das “Mães de Maio”. Conheci Joelma, a mãe de Mário, em uma cerimônia de Colação de Grau do curso de direito da Universidade Federal de Pernambuco, na qual seu filho morto foi homenageado com o nome da turma concluinte de 2017. Na ocasião, ela disse estar feliz porque o filho estaria na Universidade e que “eles” teriam matado o filho da mãe errada, afirmando que não descansaria até obter do Estado uma resposta. Ela integra até hoje o movimento #justiçaparamário.
A morte do filho de Joelma impõe, dentre outras, uma reflexão sobre o sistema de justiça criminal e as eleições e é a isso que me dedicarei.
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Bolsonaro e seus apoiadores citam com regularidade o aumento da violência no Brasil e, para tanto, valem-se dos índices de mortes violentas. De fato, registramos níveis alarmantes de homicídios e sabemos bem que Mário corresponde ao perfil da maioria das vítimas. Já Bolsonaro apresenta como solução para esse e outros problemas de segurança pública armar a população. Tento, então, acompanhar o raciocínio: pessoas armadas, menos homicídios? Ou, pessoas armadas, mais homicídios e mais investimento no Sistema de Justiça Criminal? Mário, se armado estivesse, sobreviveria após matar o policial da reserva?
Nenhuma pesquisa em nenhum lugar do mundo demonstra uma correlação segura entre liberação do porte de arma de fogo e redução de homicídios. No Brasil, aliás, estima-se que o custo para armar a população é muito maior do que aquele para equipar e qualificar nossos policiais; e, pior, que a liberação das armas de fogo poderá vulnerar a vida dos agentes de segurança ainda mais [1]. Porém, tantos argumentos sequer sobrevivem diante de uma candidatura construída a partir de uma absoluta negativa ao diálogo.
Nem falo dos eleitores, mas do candidato mesmo, que se nega, categoricamente, desde o início do período eleitoral, a ir a um debate público, sustentando, quase que invariavelmente, um a priori intransponível: “não me venha com argumentos”. É exatamente por isso que se chega a uma conclusão: a de a candidatura de Bolsonaro não está preocupada com as taxas de homicídio e com a sua redução, mas sim com um suposto excesso de direitos. Sim, a morte de Mário é apenas um pretexto.
Um dos papéis fundamentais do direito na democracia é o de controlar e racionalizar a atuação dos agentes da justiça em favor de quem se imputa a prática de um crime. Para isso, consagram-se garantias como a da presunção de inocência, da ampla defesa e do devido processo legal. Não fossem por essas garantias, talvez o algoz de Mário, por exemplo, já estivesse preso ou morto, dentro de uma perversa e antidemocrática lógica do julgamento sumário.
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Porém, Bolsonaro e seus eleitores, em vez da defesa das citadas garantias democráticas, preferem, invariavelmente, a pobreza de jargões do tipo “bandido bom é bandido morto” ou “a polícia prende, a justiça solta”, que permeiam o senso comum de modo quase absoluto, em razão de sua incansável repetição em notícias, jornais, no bar da esquina etc. Tudo isso sem que sequer tenhamos um pouco de paciência para nos perguntar: “é assim mesmo? O que isso vai mudar?”.
O candidato do PSL à Presidência da República vale-se desse senso comum e o reforça. Digo “vale-se” porque ele não o criou. Teresa Caldeira afirma que a qualificação os direitos humanos como privilégios de bandidos se fortaleceu em nosso país no início da década de 1990, quando a violência urbana se intensificou e, ao mesmo tempo, os ex-presos políticos da ditadura e instituições como as igrejas começaram a fazer da crítica ao cárcere uma bandeira das lutas pelos direitos humanos. Sim, até então, o problema da tortura ou da truculência dos agentes de segurança pública não constituíam uma verdadeira questão ou demanda política, o que se altera enormemente após uma parcela da classe média e alta militante ter sido exposta à barbárie secular brasileira. Assim, em poucas palavras, se você hoje defende um cárcere sem tortura ou um devido processo legal, logo será taxado como “defensor de bandido”.
Evidente que nenhuma dessas crenças se perpetuaria se não houvesse quem ganhasse com elas. Aponto para, pelo menos, dois vencedores: aqueles que raramente serão alvo dessas práticas ilegais, mas se sentem seguros quando o ladrão do bairro aparece morto, e aqueles que passam a exercer autoridade em uma ordem paraestatal.
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Li, recentemente, na coluna de Fernando de Barros Silva, na Revista Piauí, o termo “o guarda da esquina”, como a designar aquele agente distante da cúpula do poder, mas por ela fortalecido quando a barbárie vira regra. Ele, a quem chamarei também de “dono da rua”, é um dos vencedores. Mas, e como Bolsonaro e sua campanha entram aqui?
Afirmei acima que o candidato não está preocupado com a redução dos homicídios, simplesmente porque se nega a pensar sobre isso. Na verdade, no fundo, a intenção latente, com a massificação de seus discursos de ódio, a partir do medo difundido em textos apocalípticos de redes sociais, é o fortalecimento de “donos da rua” ou dos “guardas da esquina”; uma estratégia um tanto semelhante à verificada na última ditadura militar.
Durante a ditadura militar brasileira, as torturas e as mortes jamais foram legalizadas. É certo que houve suspensão de direitos, a exemplo o Ato Institucional n° 5 de 1968; mas, mesmo neste, mortes e torturas não foram autorizadas. Não obstante a ausência de fundamento legal, essas práticas institucionalizaram-se e não foram promovidas pelos presidentes, mas pelos “donos da rua”, justiceiros extralegais já existentes no Brasil e às vezes até de modo organizado, como era o caso do Esquadrão da Morte, grupo de extermínio liderado por Sérgio Paranhos Fleury. Também não quer dizer que nossa cúpula política não tinha conhecimento de nada disso… Mas falo de algo que se fortalece mesmo no subterrâneo, nos porões, metáfora perfeita para o que seriam os Destacamentos de Operações de Informação – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e Departamentos de Ordem Política e Social – DOPS. Fleury, que também era delegado da polícia civil, como sabido, tornar-se-ia, ao longo da ditadura, chefe de um dos mais importantes DOPS, na cidade de São Paulo. O que havia de novo na ditadura, portanto, era tornar o “dono da rua” um agente de Estado e, com isso, viabilizar a prática em uma série de graves crimes contra a humanidade.
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É esse o regime político defendido sem pudor por Bolsonaro. O sistema que investe de poder o “dono da rua” e o ergue à condição de chefia. Ele ainda afirma que direitos humanos é coisa de comunista e adverte que o Brasil sairá do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, juntando-se à Coreia do Norte, ao Iraque e à Eritreia, por exemplo. Sua defesa da ditadura e do armamento e seu rechaço aos direitos humanos se conjugam à ideia de que “bandido bom é bandido morto”, a mesma que nega o direito e reforça o justiçamento privado, os “Esquadrões da Morte” e os “guardas da esquina”. Em suma, Bolsonaro encarna em seu projeto político a sociedade que dá um tiro na cabeça de Mário impunemente – aliás, nada de surpreendente quando sabemos que, em 2003, em sessão na Câmara dos Deputados, ele defendeu expressamente ações de grupos de extermínio que cobravam cinquenta reais para matar jovens de periferia. Reside aí o que há de especialmente cínico em seu projeto: usar a morte de Mário como um número para justificar programas que expõem ainda mais Mários à morte.
Sim, porque muitas pesquisas vêm sido realizadas no Brasil para demonstrar que matamos muito mesmo, mas que é preciso pensar nos mecanismos que poderão, de fato, frear essa avalanche, dentro dos quais não está uma agenda que nega os direitos humanos, arma a população e institui uma ditadura no país.
Voltando ao processo do filho de Joelma, o primeiro dado que esses estudos mostram é que a demora no julgamento e os adiamentos múltiplos das sessões do Júri não constituem um ponto fora da curva. Essa é a realidade da maioria dos processos de homicídio no Brasil.
Ainda, segundo dados do Instituto Sou da Paz, o Estado do Pará denuncia apenas 4% dos seus homicídios, sendo esse percentual de 20%, no Espírito Santo; de 24%, em Rondônia; de 38%, em São Paulo; de 12%, no Rio de Janeiro; e de 55,2%, no Mato Grosso do Sul. Quando falamos de falta de elucidação, não cabe apenas aludir a um sistema falho. É preciso dar nome aos fatos e aos atores, implicando pessoas reais nessa história e um primeiro gargalo para a falta de elucidação está nas investigações e na falta de investimento nas polícias judiciárias do país.
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Em geral, os estudos de sociologia criminal e de processo penal indicam que o nosso Inquérito Policial é falho, em razão da falta de recursos financeiros e humanos para, por exemplo, a realização de perícias mais robustas do que apenas os laudos tanatoscópicos, e também devido a uma cultura extremamente inquisitorial que guia investigações contra aqueles sujeitos já conhecidos da polícia (e, portanto, se não se desconfia de alguém a princípio, o inquérito empenca), dos quais confissões ou versões dos fatos são colhidos sem contraditório e ampla defesa e, às vezes, mediante tortura ou tratamento degradante. Na falta de uma investigação robusta, restam como elementos de convicção narrativas vagas como “disseram que foi fulano”, “populares disseram”, “dizem lá no bairro” ou mesmo confissões duvidosas que constantemente são retificadas em juízo.
Esses problemas não se restringem ao crime de homicídio, bastando lembrar que, na imensa maioria dos casos de tráfico de drogas, os elementos colhidos nas investigações são testemunhos de policiais que realizaram o flagrante de alguém que, considerado suspeito por esses mesmos policiais, foi encontrado com certa quantidade de droga na rua ou em suas casas, as quais, aliás, costumam ser devassadas por policiais que atuam soberanamente, sem mandado de busca e de apreensão. Faltam, sobretudo no âmbito da justiça estadual, investigações mais longas e complexas.
Voltando aos homicídios, outros gargalos são identificados: adiamentos constantes de audiências por ausência de testemunhas ou das partes do processo, ausência de programas eficazes de proteção a vítimas e a testemunhas, o que acaba por conduzir a um comum “não sei de nada”, “não lembro de nada”, mesmo por parte de pessoas que estariam presentes no local do crime, excessivo número de processos e pautas apertadas das Varas, levando a uma demora na marcha processual, dentre tantos outros.
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Ao final, o número de casos denunciados (que já é menor que o de homicídios ocorridos) não viram pronúncia justamente porque as provas são insuficientes, segundo as pesquisas já antes citadas. Não se quer com isso dizer que pessoas culpadas estejam sendo inocentadas, mas que toda a nossa estrutura tem respondido de forma ineficaz aos casos de homicídio.
Enfim, não são poucos os estudos que têm se debruçado sobre essa realidade, apontado para as várias falhas que levam os homicídios a não serem punidos no Brasil e propondo soluções. Porém, nada disso parece entrar em pauta no debate político e as respostas fáceis soam aprazíveis ao ouvido de muitos eleitores, alguns dos quais conhecedores de todos esses argumentos, mas certamente possíveis ganhadores da lógica do “bandido bom é bandido morto”.
Como dito acima, a negação explícita ao direito não aborrece aqueles que, com isso, ampliam sua autoridade nas microinterações cotidianas. Também pode soar como excelente saída àqueles a quem o encorajamento dos “donos da rua” não representa um risco porque isso não é com eles, como não o era o problema do Esquadrão da Morte e como não o é a morte de Mário, afinal, as estatísticas demonstram que não são seus filhos que vão morrer. Contra essa barbárie, eles têm a branquitude ou o privilégio de viver a antepor.
Por Manuela Abath Valença
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Notas: