Tramitam no Congresso Nacional centenas de projetos de lei que pretendem modificar a Lei de Execução Penal (LEP), um texto de 200 artigos de 1984 que nunca foi levado à risca. Trabalho há 40 anos com o sistema penitenciário e posso fazer essa afirmação de consciência limpa, mas em 2015 o próprio Supremo Tribunal Federal admitiu que o cárcere à brasileira se assemelha a um estado de coisas inconstitucional, um amontoado à deriva de ideias. O feixe de luz não serenou a consciência dos legisladores. Em nome da segurança pública atacam e manuseiam a LEP, mas pelas vias erradas.
A proposta brasileira de execução penal se assemelha aos modernos tratados internacionais sobre privação de liberdade. Ela pressupõe direitos e deveres, mas, principalmente, espaços de educação, trabalho e desenvolvimento pessoal – importantes para combater as fileiras de desamparados que nunca encontraram o Estado a não ser pelas armas de um policial. O ápice desse equilíbrio é a progressão, quando o apenado alcança o retorno harmônico do Artigo 1°.
Na prática a teoria é outra. O sistema penitenciário é a expressão máxima do país e suas contradições e demagogias. A função social foi suplantada há muito tempo por desorganização, superlotação e o aprisionamento de quem se quer prender, até bebês. A consequência natural é a explosão dos números e um Estado incapaz de prover estrutura porque 1) lhe interessa pouco e 2) o ritmo é aquém de qualquer normalidade.
A violência decorre da desorganização, se alimenta dela, e é noticiada como urgente. As pessoas compram o discurso da prisão como fim desse ciclo e essa percepção endossa a irracionalidade no tratamento penal. O cárcere, dizem, é alvo de toda sorte de podridão – mas, dos outros, sempre.
Alguns projetos de lei atacam pontos realmente vulneráveis como a limitação de sinal de telefonia e dados, a tipificação de sistemas de segurança e estadualização excessiva, que impede a uniformidade de tratamento, mas a maioria agride apenas o imaginário. Um exemplo é o “regime de segurança máxima” e o endurecimento do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que saem do campo da execução e entram no porão da tortura. Eles preveem proibições e isolamentos com aura de prisão perpétua.
Os encarcerados do país já estão privados de quase tudo. A exceção não é a regra. No Paraná há homens condicionados em contêineres, acorrentados em depósitos e em unidades onde o banho de sol é oportunizado apenas a cada 20 dias. A alimentação, em geral, é desastrosa. Doenças controladas no extramuros encontram vazão na prisão. Nós ainda não experimentamos a cidadania no cárcere e já queremos negá-la. É um temperamento ilógico.
Os projetos de lei também atacam a progressão e as saídas temporárias como Genis, dispositivos que merecem pedradas porque se amparam numa espécie de “gentileza”, e se voltam exclusivamente para a segurança em detrimento a qualquer outro aspecto da vida no cárcere. Se fala em armas, grupos de intervenção, coletes à prova de balas. O silêncio é quase absoluto sobre salas de informática, livros, empregos. A LEP não é e não pode ser um acordo de guerra em que os apenados são as cabeças baixas e os agentes as espadas.
Nossa massa carcerária é composta de jovens que não estudaram, mães, vulneráveis, desestruturados. A resposta para solucionar essa equação é a aplicação da Lei de Execução Penal com oportunidade e atendimento nos moldes da Penitenciária Modelo do Paraná. Nessa unidade não há sequer algemas e 250 presos do regime fechado e agentes dividem um prédio sem a tensão da bomba prestes a explodir.
Não dá para tomar o preso ou o criminoso como aqueles da televisão e das redes sociais. As políticas públicas precisam olhar para o todo e para o pós, para que os egressos possam usar tornozeleiras sem medo em faculdades e no mercado de trabalho.
Ainda temos desafios enormes a cumprir: um sistema de amparo às vítimas, um Judiciário aberto para a Justiça Restaurativa e alternativas penais, um controle absoluto sobre as ações do crime organizado. E não há como desenhar um caminho com menos presos, que alimentam essa máquina das facções, sem uma Lei de Execução Penal justa. O legislador de 1984 sabia disso.
Isabel Kugler Mendes é advogada, presidente do Conselho da Comunidade de Curitiba e ex-vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Paraná
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