Imagem: TV Verdes Mares/Reprodução.
Por Marcos Luiz Alves de Melo
Tem sido recorrente nos últimos tempos, as notícias de motins, rebeliões, fugas em massa e caos (além da situação caótica cotidiana) no sistema penitenciário imediatamente após a chegada do ano novo. Neste ano, a tensão do embate entre organizações criminosas versus o Estado se alargou e as conturbações de maiores proporções ocorrem sobretudo em virtude de um discurso mais forte, quase uma declaração de guerra, à criminalidade durante o período eleitoral, pelo Presidente eleito (candidato à época) e seu superministro de Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro (Juiz federal à época).
Eis que, embora não tenha havido notícias de rebeliões, fugas em massa e motins (até então), a inauguração da secretaria de Administração Penitenciária e a nomeação do secretário Luis Mauro Albuquerque no Ceará balançou o sistema e relembrou a crise que assola o sistema penitenciário nacional. É que durante a entrevista no momento da nomeação, o secretário anunciou, em relação ao sistema penitenciário que: “Quem manda é o Estado. Eu não reconheço facção, o Estado não deve reconhecer facção, a lei não reconhece facção, então nós vamos aplicar a lei” [1]. Tal declaração, se serviu para alguma coisa, foi tão somente para atiçar o “Estado paralelo” oriundo das articulações do crime organizado, que na mesma noite das declarações, como forma de represália, ateou fogo em veículos, explodindo parte de viadutos e danificando rodovias [2].
Diante desse cenário, cumpre ressaltar que de há muito é discutida a perda do poder do Estado na administração dos presídios frente a atuação das facções criminosas e das medidas violentas dessas facções que desestabilizam a ordem no sistema prisional. Como medida paliativa, foi instituída em pelo menos 13 dos estados brasileiros e o Distrito Federal, o critério de separação dos detentos nas unidades prisionais de acordo com a facção pertencente, de modo a evitar conflitos [3].
A medida é polêmica, mas hoje a divisão entre os membros de facções dentro do sistema funciona como um “critério supralegal de individualização da pena”, na medida em que, a despeito da ausência de previsão expressa desse critério para separação do preso no rol de hipóteses do artigo 84 e seus parágrafos e incisos na Lei de Execução Penal, o §4º do referido artigo, incluído pela lei 13.167/2015, estabelece que: ”O preso que tiver sua integridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio.”
Ora, levando em consideração que a manutenção de presos de diferentes facções no mesmo espaço daria causa para conflitos das mais diversas ordens dentro do sistema prisional, a aplicação do artigo 84, §4º da LEP para determinar a separação dos presos de acordo com a facção é a medida mais lógica e adequada, ainda que em caráter provisório enquanto se busca solução para desarticular a perpetuação do crime organizado dentro dos estabelecimentos penais.
Noutro giro, após a infeliz declaração do secretário nomeado, a série de ataques criminosos na cidade do Ceará como represália continua sem descanso, sendo que já foram contabilizados mais de 100 ataques em diversos pontos da capital e arredores, alvejando ônibus, veículos, órgãos públicos e privados, enquanto a resposta do Poder Público, na busca por restabelecer a sua (suposta) autoridade, foi a convocação da força nacional, a criação de uma força tarefa envolvendo a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar, além da transferência de detentos apontados como líderes de facções para presídios federais [4].
Essa onda violenta que o estado do Ceará hoje enfrenta mostra que o trato de segurança pública no Brasil está sendo feito de maneira equivocada, vez que o poder público continua a dar “murros em ponta de faca”, com muitas declarações midiáticas, belicosas e autoritárias, e poucas medidas verdadeiramente efetivas, colocando o país em um ciclo infindável de medidas paliativas e quando os “remendos” não dão mais conta, os estados se socorrem das Forças Armadas, admitindo a sua incompetência de gestão, atestando a falência do sistema e terceirizando a responsabilidade para o governo federal.
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O exemplo mais claro é a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, em curso desde fevereiro de 2018 que, segundo pesquisadores, teve forte motivação política e, no entanto, meses após o decreto, os índices de criminalidade não diminuíram, o número de mortes decorrentes de ação policial aumentou e, embora os números de certos delitos (a exemplo de roubo de cargas) tenha diminuído na capital, o número desses delitos em cidades mais afastadas do centro urbano aumentou proporcionalmente. Logo, não é exagero afirmar que a intervenção federal no Rio de Janeiro foi um grande fracasso. Cita-se declaração de Itamar Silva, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE, no sexto mês pós-intervenção:
“Chegamos ao sexto mês da intervenção federal militar no Rio de Janeiro com a sensação de que nada mudou. Ou melhor, a violência aumentou na Cidade do Rio de Janeiro. O Exército foi incapaz de resolver a questão. Gastamos a nossa bala de prata.
Os números são implacáveis. Foram registrados 2.924 tiroteios nos cinco meses anteriores a intervenção. Seis meses depois da intervenção chegamos a 4.005 tiroteios. O número de pessoas mortas pela polícia aumentou 26%. A violação de direitos por forças de segurança também aumenta. E as vidas nas favelas seguem não importando ao Estado brasileiro.” [5]
É imprescindível, portanto, que o modo de abordagem no trato das medidas de segurança pública seja alterado. Menos bravatas e declarações de guerra para afagar o ímpeto punitivista e um suposto “clamor social” e mais ações técnicas, consultando especialistas, reorganizando o sistema em conformidade com os diplomas legais, constitucionais e tratados internacionais ratificados pelo Brasil e que se entenda que o Brasil não sabe guerrear. Estamos perdendo, ano após ano, a guerra às drogas, a guerra da segurança pública e o Estado brasileiro chegou a ponto de declarar guerra aos “direitos humanos”, sem entender que o incentivo à cultura da punição, a negligência em relação ao sistema penitenciário nacional e a políticas criminais profundas e sérias ao invés de medidas de populismo penal, só terão como consequência mais horror, calamidades e aumento desenfreado da onda de violência; E que fique claro que o combate ao crime organizado se dá com ações técnicas e com respeito aos dispositivos legais, não com bravatas irresponsáveis que não subsistem por si mesmas; além do mais, o recrudescimento das medidas de execução penal ao arrepio do ordenamento jurídico vitima não só ao apenado, mas atinge diretamente toda a sociedade.
Marcos Luiz Alves de Melo é Especialista em Docência Universitária pela Universidade Católica do Salvador/BA, Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Professor em Penal e Processo Penal na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador/BA e Advogado Criminalista.
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Notas: