Hegel disse que os grandes fatos e personagens da história ocorrem duas vezes, e Marx acrescentou: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.[1] A tragédia de Brumadinho evoca os fantasmas de Mariana e a questão de se a história se repetiu como farsa ou como tragédia. Ou, ainda, como tragicomédia.
Segundo Friedrich Dürrenmatt, o trágico e o cômico são dois lados de uma mesma moeda: um mesmo evento pode ser trágico ou cômico a depender das circunstâncias.
Não há nada de cômico nos eventos de Brumadinho, mas a tragédia pura também já não é mais possível, porque, como explica Dürrenmatt, na tragédia, existem heróis, culpas, clareza e responsabilidades. Mais ainda: para que a tragédia seja possível, é preciso que a audiência seja, previamente, uma comunidade, isto é, que compartilhe valores e princípios comuns. Na Antiguidade, esse senso de comunidade, essa ordem social, possibilitou a tragédia grega.
Mas a sociedade Moderna já não possui centro, vértice ou sentido que lhe possa fazer passar por algo como uma comunidade. Daí porque Dürrenmatt diz que, no mundo contemporâneo, a tragédia não é possível, pois não existem mais heróis trágicos, apenas “eventos trágicos perpetrados por burocratas sem rosto”. E vai além: na sociedade moderna, “a tragédia não é mais possível, mas a tragicomédia é quase inevitável”.[2]
A comédia, ao contrário da tragédia, não pressupõe nenhum sentido: ela nasce do caos e molda a audiência. A comédia pode, ainda, paradoxalmente, revelar a tragédia. O grotesco é a expressão desse paradoxo em que, da comédia, se chega à tragédia, extraindo sentido de um sofrimento sem sentido. De Giorgi, citando Dürrenmatt, afirma que a tragédia já não é possível porque responsabilidade e culpa são “temas que a nossa época aboliu. (…) Somos sem culpa. A culpa é pessoal. Mas somos culpados coletivamente. E isso é grotesco”,[3] ou seja, é tragicômico.
A tragicomédia se representa por sarcasmos e paradoxos. Nem farsa, nem tragédia, Brumadinho é a representação do grotesco. É a expressão de um paradoxo tragicômico. Na tragicomédia, inocentes são culpados porque, inocentemente, nada puderam fazer para evitar a tragédia. Uma Juíza ordenou a prisão de engenheiros e executivos porque, contra eles, não há provas, e a prisão é necessária porque é preciso produzir provas que justifiquem a prisão. A culpa, que com a prisão se quer provar, é necessária para que haja uma resposta e uma resposta é necessária quando se buscam culpados.
Mas qual é a pergunta certa?
Multas, prisões, denúncias e processos. Culpas e culpados. A representação da tragédia, para que a tragédia não se repita. Assim faziam os antigos. Mas, no mundo antigo, existia ordem, hierarquia, culpas e causas. Existia um sentido e existia tragédia. Na sociedade Moderna, a cerimônia do bode expiatório — à qual a Justiça se presta — não pode existir a não ser como representação tragicômica. A ilusão da responsabilidade preventiva, a farsa da punição exemplar, que evitaria novas tragédias, já não pode representar a ordem do mundo, pois essa ordem não existe. Representa apenas as dificuldades do Direito em lidar com o risco.
Para os antigos, a possibilidade de eventos danosos no futuro adquiria formas proféticas e divinatórias. Na tragédia de Édipo, tentar escapar da profecia só confirma o que foi profetizado, ou seja, o conhecimento antecipado das consequências não pode ajudar a evitá-las. O paradoxo era representado como destino. A nossa sociedade, por sua vez, acredita que o futuro é fruto de decisões e que, por meio do cálculo das consequências (probabilidades), é possível evitar as decisões erradas.
Nossa relação com o futuro também se estabelece paradoxalmente, por meio de advertências que, quando funcionam, já não são necessárias. [4] No Direito, o conceito de nexo causal oferece um tratamento para esse paradoxo: ocorrido o dano, percorre-se a sequência dos eventos que o Direito aponta como relevantes, até se encontrar a decisão sem a qual, segundo o direito, o dano não teria ocorrido. Como diz De Giorgi, “todo evento que será produzido no futuro conduzirá à revisão, construída no presente, da sequência de eventos e imputará causalidade a um certo passado”.[5]
Do direito ambiental, espera-se a capacidade de atuar preventivamente. Mas o Direito não pode evitar o futuro, pode apenas manter as expectativas sobre as normas, quando o futuro frustra as expectativas sobre os fatos. Por isso o Direito tem dificuldades em lidar com o risco. Danos ecológicos são casos especialmente difíceis, pois não são, tipicamente, atribuíveis a decisões. Como diz Luhmann, temos que “inventar decisões para aceitar a atribuição”.[6] Pressionado pelo risco, o Direito sofre deformações: responsabilidade independentemente de culpa; responsabilidade independentemente de provas; responsabilidade independentemente de causa; responsabilidade que, como se diz, é fundada no risco integral. E, ainda assim, mesmo em um sistema que busca a reparação dos danos independentemente de culpa, procuram-se culpados, como se a sanção fosse a chave para evitar o futuro.
Contudo, embora se diga fundada no risco, a responsabilidade ambiental, especialmente na sua forma penal, não é um instrumento para tratamento do risco. Para tanto, o direito ambiental desenvolveu outras formas jurídicas, chamadas de prevenção e precaução. Diante dos limites operativos da responsabilidade fundada no risco, essas formas normativas atuam com força compensatória: estabelecem condições de validade jurídica para o tratamento do risco (De Giorgi diria: do não-saber) em outros sistemas, como a política e a economia.
No direito ambiental, prevenção e precaução são normas que orientam o estabelecimento dos padrões de qualidade ambiental a serem respeitados e dos parâmetros para exercício das atividades poluidoras. A partir do cálculo das consequências futuras, ou seja, do desconhecimento do futuro, condicionam juridicamente a validade das decisões políticas e econômicas. Sua atuação pressupõe a possibilidade de se impor limites jurídicos à monetarização e politização dos riscos, ou seja, pressupõe que o direito contará com suficiente autonomia para que o código lícito/ilícito não seja corrompido pelos códigos governo/oposição (política) ou ter/não-ter (economia).
O problema a ser enfrentado, portanto, é o seguinte: como garantir que, no estabelecimento dos padrões ambientais e no licenciamento das atividades poluidoras, como a mineração, o código lícito/ilícito, que instrumentaliza os princípios da prevenção e da precaução, possa resistir à sobreposição do código da política (governo/oposição) ou da economia? Como garantir que a atuação dos órgãos ambientais não será inteiramente capturada por interesses políticos e econômicos? Como garantir que a visão segundo a qual o licenciamento ambiental é apenas um entrave ao desenvolvimento econômico não será a visão predominante nos órgãos responsáveis pela administração ambiental? Como garantir, enfim, a autonomia do direito ambiental frente à política e à economia?
Para que possa atuar preventivamente, o direito ambiental não pode depender apenas do mito da punição rigorosa, como se o caso fosse de fazer as pazes com os deuses. O Direito não pode mudar o futuro antes que ele aconteça, nem pode evitar os riscos. Mas o Direito pode atuar na distribuição dos riscos. Pode atuar para garantir a democratização dos processos de tomada de decisão e para que os órgãos ambientais não funcionem como mera extensão do governo ou de interesses empresariais. Brumadinho não é fruto da impunidade ou da falta de rigor das leis. É um problema de distribuição dos riscos. Basta lembrar que, sob a barragem, havia o refeitório dos trabalhadores, não a sede da diretoria. Não o fórum. Nem a bolsa de valores, muito menos a prefeitura ou o palácio do planalto. A culpa é pessoal. Mas somos culpados coletivamente. E isso é grotesco.
Tiago Zapater é professor de Direito Ambiental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre e doutor em Direito pela mesma.
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[1] Karl Marx, O 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte (1852), Martin Claret, 2007.
[2] Friedrich Dürrenmatt, Problems of Theater, in The Tulane Drama Review, v. 3, n. 1, 1958.
[3] Raffaele De Giorgi, Direito, Tempo e Memória, São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 157.
[4] Niklas Luhmann, Ecología de La Ignorancia, in Observaciones de la Modernidad, Racionalidad y contingencia em la sociedade moderna, Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica S.A., 1997, p. 141.
[5] Raffaele De Giorgi, Direito, Tempo e Memória, São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 217.
[6] No original: “We would, so to speak, have to invent decisions to accept the attribution – for example, a decision not to prohibit motoring”. Risk: a sociological theory, op. cit. p. 26.