Desviar a atenção para o outro não pode ser a única maneira de argumentar
Bolsonaro viu descortinar diante de si seu primeiro mês de governo. Foram inúmeras as reviravoltas de decisões e também de discursos, incluindo vários casos em que o discurso anticorrupção foi colocado à prova, em especial quando seu próprio filho passou a ser investigado, justamente, pasmem, por corrupção.
Uma verdadeira prova de fogo para seus eleitores. Diante de um primeiro momento atabalhoado e confuso, muitos deles se viram angustiados: o capitão parecia, de largada, não cumprir com os bordões de campanha. No entanto, outros tantos eleitores elegeram o otimismo a qualquer custo para acompanhar o percurso do presidente. E parecem estar fechando os olhos para tudo o que pode soar como uma crítica.
Você, por exemplo, que está aí me lendo, já se viu respondendo a uma crítica ao presidente dizendo “a Dilma é que era boa, né, quando falava em estocar vento”, ou então, “o Lula é que foi bom presidente, cachaceiro e malandro, ladrão”? Se não o fez, já viu pessoas dizerem isso e riu, achou uma ótima estratégia? É então com você que eu gostaria de dialogar hoje.
Em uma conversa, é comum que tenhamos que argumentar. Nós fazemos isso provavelmente todos os dias. Quando você não quer fazer uma tarefa doméstica e precisa defender porque não a fará, quando você questiona o que diz a professora na escola ou quando você quer mostrar que a empresa em que você trabalha é incrível (ou horrível), você está invariavelmente argumentando. Você apresenta fatos, ideias, estabelece relações entre elas.
Argumentar significa defender uma ideia, expondo suas razões para isso. Essas razões são as premissas que dão corpo à sua argumentação. E por que estamos falando sobre argumentação?
Na internet, é bastante comum que as pessoas queiram apresentar seu ponto de vista e defender suas ideias. Pense na maneira como você mesmo se comporta e no que diz (e como diz) para as pessoas. Em muitos casos, as pessoas apenas querem ter razão, ignorando outras opiniões. A minha é a ideia correta. Em se tratando de política, essa lógica é cada vez mais comum.
Vamos voltar ao exemplo da célebre frase da Dilma, em que ela falou sobre estocar vento. Esse trecho de um de seus discursos tornou-se meme, as pessoas costumeiramente o utilizam para mostrar o quanto Dilma tinha pouquíssima habilidade em proferir um discurso em público, em concatenar ideias. Muitas vezes sequer viram o discurso completo, mas fazem chacota da frase. Agora, adivinhe, quem é que, no presente, também tem dificuldades importantes em proferir discursos em público? Ele mesmo, o presidente Jair Bolsonaro.
As críticas fazem parte de qualquer relação e aparecem em inúmeras conversas que você trava no seu dia a dia. Você certamente não gosta de ouvi-las, mas são elas que permitem o desenvolvimento de cada um de nós. Por mais que possamos nos frustrar ao saber que outras pessoas se incomodam com algumas ações ou características nossas, é somente através das críticas que nos tornamos conscientes dessas diferenças.
Na política, não é diferente. Todos os governantes, que aí estão ou já passaram, tiveram de lidar com as críticas. Reconhecer falhas, aprimorar suas gestões. O silenciamento dos descontentes não fará o governo melhor. Tampouco dizer, em resposta às críticas, que o PT é a única e exclusiva representação do mal. Não nos esqueçamos: o PT esteve anos no poder e é possível fazer sobre isso uma série de críticas, mas o PT não é mais o partido que ocupa o cargo da presidência, Lula está preso, Dilma sequer se elegeu senadora. Eles não estão mais lá. Quem está lá é Jair Bolsonaro.
O governo não é um menino mimado (esperamos) que não pode ser questionado, porque bate os pés no chão e chora. A defesa cega a qualquer posicionamento do presidente eleito torna você um apaixonado incapaz de ser crítico aos equívocos de governo que passam diante de você.
Todos nós podemos sofrer deste mal: estejamos mais à esquerda ou à direita, é comum que respondamos às críticas apregoando o tal lado adversário, em especial em momentos polarizados como o que vivemos. No entanto, experimentar regras básicas de argumentação poderão ajudar você a sair do universo das falácias compartilhadas nos grupos de Whatsapp e desenvolver senso crítico. Nada disso fará com que o governo deixe de existir, mas certamente fará com que ele reconheça suas falhas ao invés de espernear e rebater tudo o que é dito e questionado com ataques.
É fundamental reconhecermos as falhas da nossa história – e, portanto, olhar o passado. Ou seja, revisitar os erros é importante para construirmos o presente. No entanto, cegar-se para o presente, tentando apagar os fatos através de argumentos incongruentes, focando exclusivamente em demonizar o passado não nos levará a lugar algum.
Em sua próxima conversa – ao vivo ou na internet – antes de rebater uma crítica, sem sequer escutá-la, apenas acusando, conheça as tais premissas dos argumentos de quem está ali, , diante de você, expondo suas ideias. E ao se posicionar, não o faça apenas no calor do momento. Busque informações que vão além do Whatsapp. Parece um conselho distante, mas se você está aqui, lendo essas mal-traçadas linhas, estou certa de que você pode dar um google rápido e descobrir, por exemplo, que, antes de demonizar o ENEM por acreditar que ele foi criado pelo PT, é preciso saber que ele não foi criado pela “corja do PT”, mas sim durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998.
Que tal?
Jana Viscardi é doutora em Linguística pela UNICAMP, com passagem pela UniFreiburg, na Alemanha. Professora e palestrante, faz vídeos semanais sobre linguagem e comunicação (e otras cositas más) no canal do Youtube que leva seu nome.
Leia mais:
A crise da representação política do Estado
O meio ambiente também sofre com a crise política
A crise de abastecimento no Brasil revela quase um século de políticas públicas de transporte privatistas e excludentes
Assinando o plano +MaisJustificando, você tem acesso integral aos cursos Pandora e ainda incentiva a nossa redação a continuar fazendo a diferença na cobertura jornalística nacional.