Muitas são as explicações a respeito da ascensão da doutrina conhecida como “neoliberal”, algumas apresentando seu início em meados dos anos 40, a partir do Colóquio Walter Lipmann [1] e outras, mais “materiais” e preocupadas com o início da aplicação da doutrina, que datam o início do neoliberalismo como reação à crise econômica “do petróleo” da década de 70, tendo a ditadura chilena como a primeira experiência prática, o que significou o “início do fim” da hegemonia keynesiana na economia mundial.
Na prática, não existe o “neoliberalismo” como unidade, sendo esta doutrina representada por diversas escolas de pensamento. Destas, destaca-se no presente artigo a corrente austro-americana, tendo como expoentes Ludwig Von Mises e Friedrich August von Hayek, este, escolhido para esta análise pela atualidade de sua produção teórica e pelo reconhecimento recebido pelo prêmio nobel de economia de 1974.
De John Stuart Mill à F. A. Hayek:
A dúvida inicial da carreira acadêmica de F. A. Hayek – entre psicologia ou economia – de certa forma já anunciava alguns dos campos que futuramente seriam valorizados; dimensões que por vezes estariam no que, para alguns, seria um campo nebuloso entre as duas ciências, no qual as fronteiras estariam borradas. Para Henry Maksoud, o principal objeto de estudo de Hayek nas últimas décadas não foi a Economia propriamente dita mas os fundamentos da teoria política e da teoria fundamental do direito.
As considerações sobre a teoria do conhecimento e o processo de compartilhamento de informações que apresenta o mecanismo da economia de mercado como um instrumento de comunicação são um grande exemplo desse movimento do autor, que chegou a publicar uma obra relevante especificamente do campo da psicologia chamada The Sensory Order. O austríaco teve como grande guia intelectual Ludwig von Mises, que por volta de 1922 mostrou ao “jovem socialista” Hayek como ele estava no caminho errado, como o socialismo era o oposto de liberdade.
O caráter de disputa ideológica presente no neoliberalismo é evidente quando, ao dissertar sobre o “problema” da educação no ocidente, Hayek apresenta como a maior mazela dos sistemas educacionais uma falta de ênfase no desenvolvimento da civilização ocidental, uma falta de propagação (propaganda) de valores específicos, de uma ideologia específica. É a defesa de uma escola com um partido específico, tendo em vista a atualidade crítica do trocadilho. Assim como destacam Pierre Dardot e Cristian Laval, para a corrente austro-americana do neoliberalismo:
Se o mercado é um processo de aprendizado, se o fato de aprender é um fator fundamental do processo subjetivo de mercado, o trabalho de educação realizado por economistas pode e deve contribuir para a aceleração dessa autoformação do sujeito. A cultura de empresa e o espírito de empreendimento podem ser aprendidos desde a escola, do mesmo modo que as vantagens do capitalismo sobre qualquer outra organização econômica. O combate ideológico é parte integrante do bom funcionamento da máquina. (Dardot; Laval, 2016, p. 150-1)
Hayek chama a atenção para a necessidade de aperfeiçoamento das instituições e afirma a necessidade de um mecanismo impessoal e que “coordene os esforços” de todos indivíduos; que permita que a defesa individual de interesses resulte em um bem social. A liberdade defendida pelo autor é de um aspecto “realista”, no qual não seria plenamente alcançável, e sua defesa se trataria na prática de minimizar a coerção e seus efeitos negativos.
O autor contrapõe o conceito de “Liberdade” às “Liberdades”, no plural. A primeira seria a ausência de coerção, esta entendida como a interferência (controladora) exercida sobre outra pessoa que não seja deliberada por ela mesma. As segundas seriam referentes, na verdade, a privilégios que são confundidos com a Liberdade.
Um destes privilégios seria a liberdade política, que é a participação na escolha do governo, no processo legislativo e no controle da administração, uma espécie de liberdade coletiva; se trataria de um equívoco pois um povo livre em sua coletividade não é necessariamente um povo livre em suas individualidades, configurando-se assim não como uma “Liberdade” mas como uma das “Liberdades”.
O equívoco mais “perigoso” entretanto, seria a concepção de Liberdade enquanto poder; este significaria pensar a liberdade como possibilidade de ação. Seria a busca por uma situação de “ausência de obstáculos”, que se tornou perigosa com o atrelamento ao ideário socialista realizada pelo liberal clássico John Stuart Mill[2]. Esta é denunciada por Hayek, para o qual a defesa da mesma é usada para destruir o que seria a verdadeira liberdade: a individual
Essa confusão do conceito de liberdade enquanto poder com o de liberdade no seu sentido mais original conduz invariavelmente à identificação de liberdade com riqueza; e isto permite explorar todo o conteúdo atraente da palavra “liberdade” para reforçar uma exigência de redistribuição compulsória de riqueza. (Hayek, 1983, p.13)
Mill é um dos maiores representante do liberalismo inglês do século XIX, corrente que ganhou status de uma das principais expoentes do liberalismo, contando com Adam Smith, David Hume, John Locke e muitos outros autores considerados clássicos por motivos diversos. Hora visto como conservador, hora como progressista e antecipador da convergência entre socialismo liberalismo, Mill foi influenciado por correntes por vezes “opostas”, demonstrando a abrangência de sua produção teórica e a complexidade de suas posições, para além de simplificações como “conservador” ou “progressista”.
Para Mill, a liberdade de pensamento e opinião são relevantes para a atividade da mente; a conduta racional, que pressupõe corrigibilidade dos erros, é fonte de respeito no homem e a individualidade é tida como um dos elementos do bem-estar. A liberdade é relacionada com o poder de escolha e de errar, diretamente relacionado a possibilidade de inovação, de diversificação, de se diferenciar do todo social, de defesa de um ambiente plural.
Seria um ambiente plural como este defendido por John Stuart Mill possível com a vigência das leis da economia de mercado, da atualidade do pensamento neoliberal de Hayek? Infelizmente, esta é uma questão que foge do objetivo e pretensão desta discussão, mas que fique registrada a inquietação, para qual os debates teóricos em torno da Escola de Frankfurt e da “indústria cultural” homogeneizadora podem ser um bom começo.
Em sua obra “Sobre a Liberdade” o inglês aborda um ponto fundamental: O que seria então uma “sociedade livre”? Esta deveria possuir uma série de liberdades que configuraria a “esfera adequada da liberdade humana”, algumas das quais negadas por F. A. Hayek como tais e afirmadas como privilégios. Comporia tal esfera a liberdade de consciência, a de exprimir e publicar opiniões, a de liberdade dos gostos e ocupações e a de associação entre indivíduos.
Stuart Mill mostra que, como não existe uma resposta única a questão de como se deve viver, o sonho de liberdade requer a possibilidade de escolhas. É esta defesa do pluralismo e da diversidade que confere, em última instância, a Sobre a liberdade a persistência de um clássico. (Mill, 1991, p. 24-5)
F. A. Hayek e os “Chicago boys” de Paulo Guedes:
Uma das heranças centrais para Hayek, em termos de filosofia e política, seria a corrente britânica do Iluminismo – composta por autores como Locke, Mandeville, Hume, Smith e Burke – em contraposição à corrente francesa – formada por Tocqueville, Constant e Mostesquieu – que seria “a origem dos principais malogros intelectuais do nosso tempo”, que estaria na raiz das tendências “totalitário-coletivistas”, conceitos que para o autor são conectados com “socialismo” e “comunismo”.
Passando pela teoria econômica pura, com obras durante a década de 20 e 30, o autor disputou o campo teórico com o keynesianismo emergente na época – denunciando neste a “fé” na intervenção governamental e a causa de aumento da inflação e desemprego – que foi vitorioso e dominante principalmente da década de 1940 em diante. Para a maioria das leituras a respeito do neoliberalismo, é somente após a crise do petróleo da década de 70 que se dá a quebra da hegemonia keynesiana no campo econômico; até então, o neoliberalismo era um conjunto de ideias já existente, porém marginais e ainda não aplicadas na realidade.
O austríaco se tornou professor da Universidade de Chicago em 1950, lar dos “Chicago boys”[3] (economistas realizadores do projeto econômico-social da ditadura chilena) e onde encontrou a mais ferrenha defesa do princípio da liberdade individual. Defesa esta que, diferenciando-se da defesa da liberdade política como uma salvaguarda da liberdade individual, chegaria a apoiar a ditadura do general Augusto Pinochet. Esta, originária de um golpe de Estado em prol da realização do mecanismo de livre mercado – o único que seria capaz de garantir a liberdade individual, “a única que importa” – perseguiu, torturou e assassinou milhares de pessoas.
A experiência chilena no neoliberalismo necessitou de um choque para ser aplicada: fora imposta a partir do assassinato do presidente eleito do Chile, Salvador Allende, em um “Onze de Setembro” (de 1973) pouco conhecido mundialmente, mas com muitos milhares de mortos a mais “na conta” do que aquele da destruição das torres gêmeas que fora televisionado para o mundo todo e legitimou a invasão de países no Oriente Médio.
O golpe militar chileno de 1973 possui diversas semelhanças daquele em 1964 no Brasil, demonstrando a regionalidade do processo das ditaduras implementadas com apoio direto do governo dos Estados Unidos da América. Este, em ambas ocasiões, tinha tropas de prontidão no litoral dos dois países prontas para suporte militar e violação direta do território e soberania nacional caso o processo golpista não se resolvesse internamente por meios indiretos, como o apoio estratégico da Central Intelligence Agency (CIA).
O processo golpista chileno ainda hoje surpreende pela rapidez e violência com que foi realizado. Para diversos especialistas, o presidente eleito Salvador Allende foi executado – apesar do relatório oficial constar suicídio – após resistir por horas com seus aliados os bombardeios e o cerco ao palácio governamental, episódio que gerou imagens raras na história mundial: um presidente eleito empunhando armas junto com seus seguranças leais, literalmente defendendo a soberania nacional. Sua figura até hoje inflama mentes e corações, principalmente da juventude chilena, que em diversos momentos empunha bandeiras com seu rosto e entoa gritos por seu nome em grandes manifestações públicas.
“Colocado em uma transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E os digo que tenho a certeza de que a semente que entregaremos à consciência de milhares e milhares de chilenos não poderá ser cegada definitivamente. Trabalhadores de minha Pátria! Tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens nesse momento cinza e amargo onde a traição pretende se impor. Sigam vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.” (Salvador Allende, 11 de setembro de 1973)
Dentre os meninos de Chicago (e de Augusto Pinochet) constava uma figura que explica a maior parte da importância de F.A. Hayek para se pensar a atualidade teórica do discurso liberal, mas sobretudo a realidade presente do nosso país: o atual “superministro” da economia e participante direto da primeira experiência neoliberal do mundo, um dos principais implementadores do sistema de capitalização da previdência chileno e cabeça da reforma previdenciária brasileira, Paulo Roberto Nunes Guedes.
O sistema de previdência chileno é considerado pelo próprio ministro uma inspiração para a reforma a ser realizada por ele. Neste modelo “inspirador”, 10% dos recursos dos trabalhadores são direcionados as chamadas Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs), que o administram desde 1981. Hoje, essas são compostas por um oligopólio de seis empresas que capitalizam um lucro diário de 1,5 milhão de dólares por dia – em um negócio rentável como poucos – enquanto 79% dos aposentados chilenos recebem um valor abaixo do salário-mínimo nacional e 44% deles estão abaixo da linha da pobreza[4].
Trata-se de uma situação muito diferente de um paraíso neoliberal por vezes apresentado (chegando Guedes a se referir ao Chile como “Suíça da América do Sul”), mas, para não alongar nessas considerações, recomendo o excelente artigo de Daniel Caseiro que analisa o sistema previdenciário chileno – refutando mitos sobre o sistema chileno e apresentando dados fundamentais para o debate – a partir da experiência do professor e conselheiro regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Andras Uthoff.
Paulo Guedes foi o pilar de diálogo do atual presidente com o mercado financeiro internacional, acalmando-o. Afinal, precisava-se de um nome aceito do “mercado” – esta entidade transcendental que o fatalismo histórico da ideologia neoliberal elevou a categoria de força maior – para que o mesmo se esquecesse, pelo menos por hora, das declarações a favor de Hugo Chávez e a favor de uma guerra civil no país, além de votações contra privatizações e quebras de monopólio estatal quando deputado, medidas nada interessantes aos negócios e a segurança jurídica tanto desejada.
O diálogo com John Stuart Mill – apesar das diversas opções de teóricos disponíveis e das limitações dada a distância temporal entre as obras – se deu devido à pertinência da análise comparativa entre os dois autores dadas as rupturas que foram apresentadas. O fato de Mill se localizar na corrente britânica do liberalismo aumenta a pertinência comparativa, visto que esta influenciou diretamente Hayek, e mesmo assim, diversas nuances foram percebidas entre o desenvolvimento teórico dos dois autores, demonstrando a irregularidade das rupturas e continuidades presentes no pensamento liberal.
John Stuart Mill é um liberal britânico do século XIX e tem como um de seus objetivos principais de sua contribuição teórica a realização da maior felicidade para o maior números de pessoas; F. A. Hayek, um pensador contemporâneo e que disputa o sentido da tradição (neo)liberal o critica, pois o critério de “felicidade” seria estranho à mesma e poderia legitimar intervenções estatais, das quais surgiriam o “Welfare State” (Estado de bem-estar social) e estruturas “totalitárias-coletivistas”, diretamente relacionadas ao “comunismo” e ao “socialismo” para o austríaco.
Nesta disputa de tradição, o neoliberalismo austro-americano da Escola de Chigaco rompe com o liberalismo clássico com relação a uma importante ideia: a de neutralidade, de naturalidade da economia de mercado; de uma certa fobia quanto a qualquer intervenção exterior a ele. Isto se dá já que o Estado, para Hayek, deve criar concorrência onde não há, tendo em vista o reconhecimento da artificialidade da economia de mercado em oposição às ideias de laissez-faire e da “mão invisível” (Dardot e Laval, 2016).
A pertinência da discussão histórica na doutrina liberal em disputa, para a compreensão da realidade material presente, nos mostra também a importância de reconhecer àquela dos pontos levantados pela doutrina. É o caso dos desenvolvimentos teóricos sobre o conhecimento, sua distribuição na sociedade e as possibilidades de seu aproveitamento e da importância dada à esfera da liberdade individual, que não necessariamente vem acompanhada de uma desvalorização de outras liberdades, assim como nos mostra diferentes posicionamentos teóricos na tradição liberal.
Implementador daquela que é considerada a primeira experiência neoliberal do mundo – um casamento orgânico entre economistas liberais e militares[5], o atual “superministro” da economia Paulo Guedes é uma figura-chave para compreendermos (e para ser compreendido a partir) as rupturas e continuidades da tradição liberal, que buscou-se apresentar no presente artigo partir do diálogo entre dois dos diversos autores pertencentes a essa doutrina histórica.
A doutrina liberal, tão bem formulada pelos clássicos ingleses, é uma ideologia com um significado histórico perfeitamente definido: serviu a Inglaterra para consolidar as vantagens que o salto tecnológico do último quartel do século XVIII lhe proporcionara. (Furtado, 1975, p.17)
Hugo Goulart de Faria é estudante de Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e de Direito da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), participante do Centro Interno de Pesquisa em Cultura Popular (CECULT/UNICAMP) e do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX/UNICAMP).
Leia mais:
O gênero do projeto “Anticrime” do Moro revelado na violenta emoção
Dois livros sobre a investigação étnico-racial em nossa sociedade
The Handmaid’s Tale: um retrato da dominação masculina e do patriarcado
Assinando o plano +MaisJustificando, você tem acesso integral aos cursos Pandora e ainda incentiva a nossa redação a continuar fazendo a diferença na cobertura jornalística nacional.
________________
Bibliografia:
MILL, J. S. Sobre a Liberdade. Petrópolis: Editora Vozes, 1991
HAYEK, F. Os Fundamentos da liberdade. São Paulo: Editora Visão, 1983.
DARDOT, P. LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
FURTADO, C. Análise do “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
<https://www.youtube.com/watch?v=Ej8Elfr1Oj4>. Acesso em 22 de Fevereiro, às 12h.
<http://www.justificando.com/2018/12/18/10-mitos-do-sistema-previdenciario-de-paulo-guedes-segundo-andras-uthoff/>. Acesso em 22 de Fevereiro, às 12h.
[1] Duas grandes correntes vão se esboçar a partir do Colóquio Walter Lippman, em 1938: a corrente do ordoliberalismo alemão, representada sobretudo por Walter Eucken e Wilhelm Ropke, e a corrente austro-americana, representada por Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek. (A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2016).
[2] “Bobbio, por exemplo, aponta que Mill representa a ala radical do liberalismo europeu, que via na democracia o desenvolvimento consequente dos princípios liberais e não considerava o liberalismo incompatível com o socialismo.” (Mill, 1991, p.16)
[3] Economistas, por vezes chilenos, provenientes da chamada Escola de Chicago, da Universidade de Chicago, e que auxiliaram na implantação do programa econômico-social da ditadura do General Augusto Pinochet no Chile, que perseguiu e assassinou mais de três mil pessoas.
[4] Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/12/18/10-mitos-do-sistema-previdenciario-de-paulo-guedes-segundo-andras-uthoff/> Acesso em 22 de Fevereiro de 2019 as 12h.
[5] “A história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa.” (Karl Marx, Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, 1852)