O que justifica priorizar o Parque Minhocão? Quanto custa sua implantação e manutenção? Que problemas ele pode gerar? Quem lucrará com esse parque?
Imagem: foto do mural da artista Mona Caron no Elevado Presidente João Goulart, mais conhecido como Minhocão. Fonte: Instagram da artista.
Por Br Cidades
Demolir o Minhocão ou iniciar a implantação de um parque é a discussão que mobilizou a capital paulista nos dias que antecederam o carnaval. Desde que surgiu a ideia dessa imensa ponte rasgando quase 4 km da cidade, os paulistanos se dividem entre sua necessidade e sua monstruosidade. Numa cidade que não consegue manter vivo o jardim vertical da Avenida 23 de Maio, esse imenso jardim flutuante tem grandes chances de minguar em alguns anos, como minguado está o debate público que a Prefeitura deveria promover na cidade.
Para quem não é de Sampa, Minhocão é o nome popular da via elevada que liga a Praça Roosevelt, no centro, ao Largo Padre Péricles, nas Perdizes, permitindo uma ligação viária Leste-Oeste na cidade. De forma espetacular, o Minhocão foi erguido em rápidos 14 meses e entregue como presente à cidade de São Paulo, no seu aniversário de 1971. Foi construído pelo prefeito Paulo Maluf, indicado pela ditadura para um mandato de 02 anos.
O jovem político precisava deixar sua marca na cidade. Deixou essa cicatriz que custou, em dinheiro da época, 40 milhões de cruzeiros, o que hoje equivaleria a quase R$ 220 milhões. Para o dia da inauguração, a Prefeitura de São Paulo distribuiu um convite que retumbava: “a obra, que é a maior no gênero em toda a América do Sul, eternizará em sua denominação, uma das grandes figuras da revolução de 1964”. No dia da inauguração, um carro quebrado provocou um grande congestionamento. De lá para cá, deixou de ser Costa e Silva e foi rebatizado como Elevado Presidente João Goulart.
Foto do Acervo Estadão
As polêmicas em torno dessa obra de arte da engenharia nacional vão para além da nomenclatura. Reportagem do jornal Estadão, de 01 de dezembro de 1970 sentenciava: “Elevado, o triste futuro da avenida”, numa espécie de réquiem para aquela que teria sido uma das avenidas mais chics de São Paulo, ladeada pelos bairros da elite paulistana de então. Esse mesmo jornal perguntou, nos dias que antecederam a inauguração, “Quem diz que o Minhocão é útil?”. Perguntou e já respondeu, pois a mesma reportagem dizia que “em São Paulo foi construído o maior viaduto da América Latina, que acompanha as depressões e elevações do terreno, fazendo com que nos vejamos numa verdadeira montanha russa. Mas São Paulo não é só a zona oeste. Para a cidade, seria mais rentável o metrô.”
Nem bem completou 05 anos e já se discutia a demolição da via elevada. Ao longo dos últimos anos, o seu uso como via de tráfego de automóveis teve várias restrições. Em 1976, passou a ser fechado à noite, da meia-noite às 5h. Em novembro de 1989 a restrição aumentou, com fechamento de segunda a sábado, das 21:30 até às 6h e fechamento total aos domingos. Desde 2016 passou a fechar às 15 h dos sábados, não abrindo aos domingos. No ano de 2006, a Empresa Metropolitana de Urbanismo – EMURB, anunciou a demolição do elevado e organizou um concurso de ideias para a região. Nos finais de semana e feriados possui um uso intenso, com gente correndo, caminhando, flertando, pedalando. O corredor suspenso de carros vira uma área de lazer importante nessa cidade tão carente de espaços qualificados, no centro e, especialmente, nas periferias.
Mas foi o Plano Diretor de 2014 que selou o destino do Minhocão ao estabelecer que uma lei específica determinará “a gradual restrição ao transporte motorizado”; definirá “prazos até sua completa desativação como via de tráfego, sua demolição ou transformação, parcial ou integral, em parque”.
O parque já existe no papel. A Lei Municipal nº 16.833/2018 criou o Parque Minhocão e eliminou a possibilidade de demolição, apontando duas hipóteses de destinação: transformação parcial ou transformação integral em parque. Determinou que o Poder Executivo deveria apresentar Projeto de Intervenção Urbana – PIU, garantindo a “gestão democrática e participativa, das etapas de elaboração, implantação, execução e avaliação do PIU”; ouvindo o Conselho Municipal de Política Urbana – CMPU. Também é tarefa atribuída ao PIU a “adoção de instrumentos urbanísticos de controle e captura da valorização imobiliária decorrente das intervenções promovidas pelo Poder Público na área de impacto desta Lei”. A lista de tarefas e diretrizes da Lei, por enquanto, foi ignorada.
Assim, de forma também espetacular, o Prefeito Bruno Covas resolveu e anunciou a implantação do primeiro trecho do Parque Minhocão, entre a Praça Roosevelt e o Largo do Arouche, numa extensão de 900 m, a um custo de quase R$ 40 milhões (dados não oficiais). Tal qual o prefeito que implantou, o prefeito atual também quer deixar sua marca sem muito diálogo com a cidade. Se em 1971 os tempos não eram para conversa, os dias atuais exigem muito debate.
Sabe-se que o Arquiteto Jaime Lerner, contratado pelo SECOVI-SP, presenteou a cidade com um “projeto” para o parque. O arquiteto que conduziu o projeto dentro do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados apontou que “a vizinhança já começou a transformar o local com algumas atividades esporádicas, principalmente durante o fim de semana. É a sinalização da mudança. Depois de pronto, será como a Orla do Guaíba, o centro de São Paulo vai mudar radicalmente”. Tenho muita preocupação com as orlas depois de ter ouvido, num evento em Manaus, que o pior cenário para os moradores tradicionais é quando a beira de um rio vira orla. A orla é moderna, a orla é chic, a orla é exclusiva. Mas a orla é para poucos.
Em várias cidades, os centros urbanos, outrora abandonados, serão as novas orlas para o mercado imobiliário. Há tempos, os centros de quase todas as capitais brasileiras deixaram de despertar interesse para as elites econômicas e se configuraram como importantes territórios populares, espaços para morar ou desenvolver pequenos negócios. No caso do entorno do Minhocão, os incômodos são tantos que o baixo preço do aluguel permitiu que trabalhadores de baixa renda pudessem residir no Centro, como demonstrado em recente artigo do Professor João Sette Whitaker.
Ocorre que o interesse imobiliário ressurgiu e pipocam lançamentos de minúsculos apartamentos, que a depender da localização, são vendidos em uma semana. Os movimentos por moradia e todos os que passaram anos defendendo a presença da moradia popular na região central, provavelmente, serão atropelados pelos lofts e estúdios para investidores e uns poucos que podem pagar R$ 10 mil o metro quadrado para morar no Centro.
Basta um presente, um guarda-sol na areia, para que o espetáculo se processe. E as grandes cidades brasileiras são, sistematicamente, presenteadas com “projetos de orlas” nas pautas e projetos que prometem mudar radicalmente a paisagem urbana. E mudam, criando cenários para novos negócios urbanos que não admitem a presença de determinados usos e pessoas. Projetos que não resolvem antigos nós e dramas urbanos, mas que abrem frentes para novas oportunidades de ganhos com a valorização imobiliária promovida por esse tipo de obra. Os especialistas chamam de gentrificação a expulsão dos indesejados, aqueles que ninguém quer como vizinhos, mas que, teimosamente, precisam de espaços na cidade.
Tais presentes incidem nas prioridades das cidades ignorando por completo as necessidades mais óbvias e a legislação urbana, especialmente os Planos Diretores. Além do próprio elevado, que Maluf transformou em prioridade no seu curto primeiro mandato, São Paulo teve a ponte Estaiada e o “Nova Luz”; o Rio de Janeiro teve o Porto Maravilha, com o emblemático Museu do Amanhã; Belo Horizonte, o novo Centro Administrativo, para citar uns poucos. Mesmo as cidades pequenas têm seus arroubos de espetáculos, edificando portais caricatos e pretensamente monumentais, em cenários de pura carência e precariedade. Esses projetos são quase sempre anunciados como processos de modernização ou vinculados a demandas culturais, turísticas e, mais recentemente, ambientais. A tática parece boa e atrai muitos apoios, como quem diz: mas é um parque!
Dessa forma, as prioridades indicadas nos Plano Diretores são facilmente suplantadas.
Se nos ativermos ao tema parques, verifica-se que o Plano Diretor de São Paulo traz, no Quadro 07, uma lista de 273 parques municipais existentes e propostos. Contando somente os propostos, são 102. 50% desses são parques lineares ou naturais, portanto importantes para a preservação e recuperação de ecossistemas naturais urbanos e cursos d’água. O Orçamento da cidade de São Paulo para 2019 previu R$ 291 milhões para a Gestão Ambiental. Desse montante, R$ 40 milhões para investimentos, praticamente o mesmo valor da implantação do primeiro trecho do Parque Minhocão. Para construção e implantação de novos parques na cidade inteira estão previstos R$ 12,6 milhões. Logo no início dessa gestão, a concessão de parques emblemáticos despontou como prioridade. Mas o Parque Minhocão passou na frente de todos os parques previstos, fez esquecer a austeridade financeira e os argumentos que justificaram os planos de concessão de vários parques municipais, dentre eles o Ibirapuera.
Fonte: IRIS / TCM – https://iris.tcm.sp.gov.br/Iris/10659
Esse projeto decidido e anunciado atropelando as regras da Lei Municipal que criou o Parque Minhocão não resolve nenhum dos problemas decorrentes da existência do Elevado. Deixa sem solução adequada a ligação leste-oeste – como não há proposta de transporte coletivo, perde-se a oportunidade de colocar novos modais no centro das discussões, superando a lógica do transporte individual motorizado. Nenhuma proposta para controle e captura da valorização imobiliária – para onde irão os moradores que há quase 50 anos suportam o vizinho incômodo e serão expulsos com a provável explosão do valor do metro quadrado? Os baixios do elevado serão o que, além de um possível jardim de zamioculcas? Quais as propostas para os pequenos comerciantes, para as pessoas em situação de rua? O que justifica a absoluta priorização do Parque Minhocão? Quanto custa efetivamente a sua implantação e manutenção? Quem lucrará com esse parque? Por que não se discute todas essas questões antes do início das obras?
Há muitas perguntas não feitas e muitas outras sem respostas. O curativo verde nem de longe amenizará os danos dessa imensa cicatriz urbana, ainda que deixe alguns corações mais confortáveis.
Br Cidades é uma rede de atores de diversas áreas que se propõe a pensar e promover a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis para a reconstrução democrática do Brasil.
Leia mais:
Assinando o plano +MaisJustificando, você tem acesso integral aos cursos Pandora e ainda incentiva a nossa redação a continuar fazendo a diferença na cobertura jornalística nacional.