Por quem os sinos dobram em uma democracia republicana? O projeto constitucional de 1988 e a extinção de colegiados pelo decreto 9.759/ 2019
Foto: EBC.
O decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, coloca a necessidade de revisarmos os preceitos estabelecidos pela Constituição Federal brasileira. Sob o argumento da eficiência administrativa, limpeza ideológica e corte de gastos, o ato presidencial estabelece diretrizes e extingue de uma só vez os colegiados da administração pública federal, instituídos por decreto ou ato normativo inferior. A medida tem uma face inédita de retrocesso social, político, jurídico e administrativo, estabelecendo um verdadeiro desrespeito à construção histórica do texto constitucional vigente no Brasil.
O Estado brasileiro foi configurado para promover e proteger direitos, em uma relação direta entre o dever de agir e a demanda social apresentada. A presença da população no âmbito do planejamento e das decisões sobre ações públicas, no Brasil, é constitucionalmente obrigatória em função da relação direta que existe entre democracia e garantia de direitos, se concretizando na ocupação de espaços deliberativos tais como os conselhos. Nessa equação, a existência de instâncias colegiadas representativas dos diversos segmentos sociais é um elemento configurador da legitimidade necessária ao Poder Público.
Neste cenário, a autodeterminação política do cidadão tem um peso significativo como critério de validade das decisões políticas e administrativas estatais. Implica em compreender que a falta de legitimidade do ato presidencial fica evidente à medida que fere os instrumentos que garantem a realização dos processos democráticos, responsáveis por promover uma relação franca e transparente entre sociedade civil e Administração Pública. Transparência e publicidade perdem espaço para a concentração do poder de decisões, configurando uma evidente restrição ao exercício da democracia participativa e um grave retrocesso social.
Além de fazer um corte inconstitucional antidemocrático nos instrumentos de democracia, o decreto está baseado em uma competência formal e material ilegítima já que a extinção de parte dos colegiados atingidos pela medida só poderia ser feita por meio de lei própria. A redução da participação é um desrespeito frontal à previsão do direito de participação, constituindo uma ofensa aos direitos civis e políticos garantidos constitucionalmente.
Diante da natureza deste ato presidencial, é importante lembrar que a Constituição Federal foi promulgada sob forte anseio coletivo de abertura democrática, progresso econômico, bem-estar social, liberdade civil e política, desenvolvimento e direito à cidade. O texto constitucional brasileiro prevê a Democracia como fundamento e limite do poder estatal e até a leitura mais simplória dos artigos iniciais da Constituição Federal deixa claro que a validação da própria existência e a atuação do Estado tem como base a cidadania e a soberania popular relacionados aos princípios e regras de organização de um Estado-administração, por dever, dialógico.
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Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte entregou ao país um projeto de Estado vinculado aos princípios da democracia representativa, participativa e deliberativa, plasmado na inclusão da participação popular como elemento decisório da sua atuação administrativa. O capítulo da Política Urbana é um forte exemplo já que seu conteúdo é fruto de uma importante presença popular, exercida por meio de debates e sugestões que resultaram em emendas ao texto da Constituição, registrados oficialmente.
Essa formalização do dever de respeitar e promover a participação definiu um projeto concreto de nação, republicanamente democrática, cujo objetivo expresso no texto é efetivar o bem estar social em uma sociedade justa e solidária, com o dever de reduzir as desigualdades e erradicar a pobreza em territórios urbanos e rurais. Este projeto é sustentado pela articulação de vários elementos como soberania popular, dever de proteção e promoção dos direitos e garantias fundamentais, ao lado de previsões sobre o sistema econômico capitalista, o dever de eficiência estatal por planejamento, ética, função social da propriedade privada e da cidade.
A Constituição define que a efetivação do Estado Republicano Democrático e Social de Direito só acontece pela materialização de instrumentos e mecanismos próprios de cidadania ativa, com a participação social nos espaços institucionais para criar, transformar, controlar e legitimar o poder estatal. Indica ainda que a vontade social é um direito fundamental e, para acontecer, necessita de procedimentos próprios coerentes com a essência da soberania popular. A história da Assembleia Nacional Constituinte registra e confirma o diálogo com a sociedade em todo o seu processo de construção, estabelecendo um vínculo indissociável com a diretriz orientadora da participação. Ficou acertado por quem os sinos devem dobrar!
Por tudo isso, o Estado brasileiro passou a ter por dever o aperfeiçoamento dos espaços de discussão, elementares a um Estado Democrático, sendo que as tarefas que lhe competem têm um vínculo direto com a promoção do desenvolvimento pessoal e coletivo – bem-estar social -, o que retoma o tema da democracia republicana. Dessa forma, a eficiência estatal exige que as ações propostas tenham eficácia e efetividade já que a lógica da atuação pública não pode estar concentrada, exclusivamente, na equação custo-benefício ou mesmo, pasmem, em operações de limpeza ideológica.
Em uma análise rasante, mas com ciência da história constitucional, fica claro que o decreto desrespeita as normas constitucionais e a estruturação orgânica e jurídica da Administração Pública. Está em vigência um ataque, sem constrangimentos, à Democracia participativa. Extinguir colegiados por decreto é uma medida autoritária que manda um recado contundente no qual inclui redução da transparência e impedimento do controle efetivo da atuação do Estado. Ao ferir de morte a Democracia, o decreto n. 9.759/2019 definiu, à revelia da Constituição, por quem os sinos dobrarão a partir de agora.
Lígia Maria Silva Melo de Casimiro é Professora adjunta de Direito Administrativo da Universidade Federal do Ceará – UFC
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