O Ministério da Saúde proibiu o uso do termo “violência obstétrica” em normas e políticas públicas por meio de um despacho assinado pela coordenadora-Geral de Saúde das Mulheres Mônica Almeida Neri, sob argumento de que não há consenso na definição do termo. Com isso, a política pública de prevenção desse tipo de violência de gênero no país vai na contramão do que orienta Organização Mundial da Saúde (OMS), que conceitua violência obstétrica enquanto “uso intencional de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”.
Segundo o relator do documento emitido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Ademar Carlos Augusto, há uma proliferação de leis sobre violência obstétrica no país e um movimento orquestrado para responsabilizar apenas os médicos pelo que ele chama de “situação caótica” do atendimento às gestantes. Para ele, essa posição é ideológica e importada de países com “viés socialista”.[1]
Desse ponto de vista, a posição do CFM está alinhada àquilo que setores da direita chamam de “marxismo cultural”, uma teoria da conspiração que afirma que os movimentos de esquerda promovem pequenas alterações graduais na sociedade de forma a implantar, a longo prazo, uma sociedade global, igualitária e multicultural, e, em última análise, o socialismo. “Ideologia de gênero”, ambientalismo, feminismo, movimentos LGBTs, imigrantes e nacionalistas negros são movimentos e grupos considerados parte nessa “grande conspiração mundial”.
A atuação do Ministério da Saúde não se afasta do restante do governo Bolsonaro. Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, questiona o que chama de noção fluida de gênero e de nação proposto pelo “marxismo cultural globalista”. Abraham Weintraub, Ministro da Educação, propôs “expurgar o marxismo cultural” das universidades[3]. Não por acaso ambos são seguidores do “guru intelectual” do governo, Olavo de Carvalho, famoso por suas manifestações nesse sentido[4].
Considerar a violência obstétrica como um mero retrato de “movimentos de esquerda” é fechar os olhos para uma realidade social a que estão submetidas mulheres de todo o país, tanto no Sistema Único de Saúde quanto em hospitais privados. A violência obstétrica é tanto física quanto psicológica, acontece no momento do parto e naqueles que o circundam, em exames de pré-natal e até mesmo em salas de espera. Gritos, piadas, frases vexatórias, cortes de períneo, compressão da barriga da gestante e proibição da entrada de acompanhante são apenas alguns exemplos de como a prática ocorre.
A manifestação do Ministério da Saúde adiciona nessa “conspiração socialista” um elemento perverso de desigualdade de gênero. Ao tratar com desconsideração uma violência sofrida apenas por mulheres em situação de vulnerabilidade, uma vez gestantes e em trabalho de parto, por uma suposta vinculação ideológica na identificação dessa violência, o governo rejeita não apenas as recomendações internacionais, mas viola a própria Constituição. O artigo 6º do texto constitucional consagra a proteção à maternidade como um direito fundamental social, e o Título VIII, que dispõe sobre a Ordem Social, retoma a proteção à maternidade na assistência social.
O que ocorre com o Ministério da Saúde é um descaso com a proteção constitucional atribuída às mulheres brasileiras, bem como uma violação dos compromissos assumidos pelo Brasil em matéria de direito internacional dos direitos humanos, como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo n. 4.377/02. Segundo o documento, a “adoção pelos Estados-partes de medidas especiais, inclusive as contidas na presente Convenção, destinadas a proteger a maternidade, não se considerará discriminatória”.
O que o governo pretende com essa medida é proteger uma classe de profissionais em detrimento do bem-estar e saúde das gestantes brasileiras, violando a dignidade, os direitos fundamentais sociais e as recomendações da OMS. Mais uma vez, prevalece o conservadorismo e a ignorância de um governo que, além de despreparado, não tem como objetivo fazer valer a Constituição ou promover uma sociedade igualitária. Combater a violência obstétrica não é uma questão ideológica, é uma questão constitucional.
Letícia Kreuz é doutoranda e mestra em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.
Edição: Caroline Oliveira.
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[1] Ministério da Saúde veta uso do termo ‘violência obstétrica’. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/05/ministerio-da-saude-veta-uso-do-termo-violencia-obstetrica.shtml?loggedpaywall
[2] ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. Trump e o Ocidente. Cadernos de Política Exterior – Publicação semestral do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), Fundação Alexandre de Gusmão,
a. III, n. 6, segundo semestre de 2017. p. 323-357.
[3] Novo ministro da Educação, Weintraub defende expurgo do ‘marxismo cultural’. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/04/novo-ministro-da-educacao-weintraub-defende-expurgo-do-marxismo-cultural.shtml
[4] CARVALHO, Olavo. Do marxismo cultural. Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/semana/06082002globo.htm