Eutanásia é a antecipação da morte de um indivíduo por razões humanitárias, tendo em vista amenizar seu sofrimento ou, simplesmente, respeitar sua vontade
Por Maria Antonia Silva Generoso
De início ao citar a eutanásia já surge na memória das pessoas a definição popular de ser o ato de antecipar a morte de alguém, algumas vezes por compaixão por quem esteja em sofrimento em decorrência de alguma enfermidade. O ato de dispor da vida cria discussões em todas as classes sociais e todos os ramos de pesquisas e estudos, pois existem muitas posições conflitantes.
No âmbito religioso surgem os argumentos contrários, alegam que a vida é um dom divino, e dessa forma, ninguém tem o direito de tirá-la. Surge também a discussão sobre o direito sucessório, argumenta-se que tal pratica pode ser levada a termo apenas em benefício do profissional que a possibilita e ou dos herdeiros, desprezando-se por completo a vontade e as crenças do enfermo.
Entretanto, ainda que a maioria das pessoas trate o direito à vida como irrenunciável e absoluto deve-se pensar na vontade de uma pequena parcela de indivíduos que acreditam no direito de morrer dignamente.
Nada seria digno se ao final da vida o doente fosse abandonado no momento da morte, sem a devida atenção que essa fase merece. A morte deve ser encarada como uma fase da vida humana, como uma etapa a ser vivenciada por todos nós, devendo ser preservada a dignidade até o final, tendo como objetivo o bem morrer, ou também a boa morte.
O direito a morte digna pode ser considerado como derivado do direito à vida digna, tendo em vista que se trata de realizar uma vontade do ser humano de forma natural, humanizada, sem prolongamento do sofrimento da dor e sofrimento.
Não podemos tratar o ser humano somente como o ser biológico, visualizado pela ciência médica como um corpo sem alma, deve-se analisar a dimensão e essência do ser psicológico, pensante e livre para escolher como, onde e ao lado de quem cumprirá sua jornada, portanto, não há vida digna sem morte digna.
Ocorre que com os avanços da tecnologia, da medicina e da sociedade o embate surge sob a perspectiva de diversos ângulos, buscando novas descobertas e a solução de conflitos entre a ética e a moral. São debatidas duas concepções: a eutanásia como morte digna ou auxílio ao suicídio?
A eutanásia é o meio pelo qual se retira a vida do ser humano por razões humanitárias, ou seja, antecipa a morte tendo em vista o sofrimento de um enfermo, e é dividida em passiva e ativa. De acordo com Maria de Fátima Freire [1], “quando se tem o objetivo de alcançar eutanásia, fala-se em eutanásia ativa. Já eutanásia passiva é a omissão, a recusa da realização de determinado tratamento naquele momento.”
Deve-se deixar de ser vista como uma possibilidade de ocasionar a morte de alguém, mas sim que a utilização de tal via é uma antecipação da vontade do paciente, respaldado no princípio da liberdade de escolha e ainda, no princípio da dignidade da pessoa humana.
Além das opiniões conflituosas, alguns direitos colidem e a proporcionalidade deverá ser a luz diante do caso concreto para solucioná-lo.
A Constituição Federal tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, explícito no art. 1º, inciso III e art.3º, traçando princípios a serem seguidos pela República Federativa do Brasil.
Igualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê a dignidade como inerente a todos os indivíduos, pois, a considera como fundamento de paz, justiça e liberdade no mundo.
A dignidade pode ser definida como qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor, honra, autoridade, nobreza. É um princípio de elevada carga axiológica [2], norteador do Estado Democrático de Direito e possui um valor inerente ao homem.
A partir do momento que o ser humano não tem capacidade para viver livre e pleno, exercendo seus direitos e usufruindo sua autonomia, o Estado deve permitir que a escolha de continuar ou não, ou seja, possibilitar uma morte digna, caso assim o queira.
Assim sendo, não é digno manter vivo um paciente em estágio terminal, desacreditado, passando por dor e sofrimento, sabendo que os tratamentos disponíveis não são suficientes para reverter o quadro.
Portanto, a dignidade humana deve estar presente na hora da morte, possibilitar o paciente escolher viver naquelas condições ou preferir uma morte digna. O Estado tem o dever de proporcionar saúde a todos, no entanto, ninguém está obrigado a algo senão em virtude de lei, não podendo ser obrigado se submeter a tratamento de saúde, sem observar sua autonomia.
Antes de mencionar outros direitos, o direito a vida é o princípio de todos. Assim entende Paulo Gustavo Gonet Branco [3]: “O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo.”
Entretanto, não é um direito absoluto, existem possibilidades de flexibilizá-lo, como exemplo, em caso de legítima defesa. Mas o pensamento sobrevoa a seguinte indagação: interromper ou não a vida de um paciente em fase terminal? Entendo que não basta o ser humano respirar, o viver contempla mais que isso, é poder escolher a forma, como e onde viver, sem depender das escolhas alheias.
“A obstinação em prolongar o mais possível o funcionamento do organismo de pacientes terminais, não deve mais encontrar guarida no Estado de Direito, simplesmente, porque o preço dessa obstinação é uma gama indizível de sofrimentos gratuitos, seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum benefício, ainda assim, se esse benefício não ferir a dignidade do viver e do morre. (…) É que a vida deve prevalecer como direito fundamental oponível erga omnes quando for possível viver bem. No momento que a saúde do corpo não mais conseguir assegurar o bem-estar da vida que se encontra nele, há de ser considerados outros direitos, sob pena de infringência ao princípio da igualdade. É que a vida passará a ser dever para uns e direito para outros [4].
É sabido que o Estado tem o dever de preservar a vida, entretanto, a vida não pode ser uma obrigação, não querer sofrer diante da morte é um direito e está sendo praticada a dignidade humana, não pode caracterizar ato contrário ao texto constitucional.
A liberdade e o direito à vida são protegidos constitucionalmente e são essenciais ao ser humano, mas ao impor que o paciente deve ser mantido vivo surge o afrontamento ao direito a liberdade.
Se existe o respaldo constitucional para viver dignamente porque ao chegar ao final da vida querem limitar e fazer com que o paciente abre mão dessa dignidade e entregar à outras pessoas o seu trajeto final. O prolongamento dos tratamentos em situações irreversíveis é um atentado à vida.
Não estou defendendo que a vida deve ser disponível e a qualquer custo ceifá-la, no entanto, espero que esse direito seja analisado em cada caso concreto e de forma ponderada conjuntamente com os demais direitos inerentes ao ser humano. A eutanásia deve ser um ato legalizado em nosso ordenamento jurídico, pois, em determinadas situações, é possível a disponibilidade da vida pelo paciente, já que o direito à vida, embora seja dever do Estado, não deve ser imposto.
Maria Antonia Silva Generoso é Pós-graduanda em Advocacia Criminal pela ESA-MG/FUMEC. Coordenadora do Laboratório de Ciências Criminais do IBCCRIM – Uberaba/MG. Membro das Comissões de Direitos Humanos e Direitos da Mulher Advogada na 14º Subseção da OAB/MG. Advogada.
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Notas: