Novo decreto das armas (Decreto nº 9.797/2019) mantém abrandamento da repressão a crimes do Estatuto do Desarmamento de posse e porte ilegais
Por William Akerman Gomes
Logo após a edição do Decreto nº 9.785/2019, destacamos [1] que a flexibilização das normas atinentes às armas de fogo repercutiu, diretamente, na configuração dos crimes dos arts. 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento, com abrandamento no tratamento penal de diversas condutas antes capituladas no tipo penal mais grave – artigo 16 da Lei nº 10.826/2003 –, que passaram a se amoldar aos tipos com pena menor – arts. 12 e 14 do mesmo diploma legal – e sem a epígrafe da hediondez, por se tratarem de normas penais em branco [2].
Agora o Decreto nº 9.797, de 21 de maio de 2019 – que altera alguns pontos do anterior, após as críticas veiculadas em diferentes aspectos – não afasta os efeitos benéficos apontados para condutas tidas como delituosas perpetradas com diversas armas, que, com as alterações do Decreto nº 9.785, passaram a ser de uso permitido, e não mais de uso restrito, e conservam esse caráter de acordo com o novo texto.
O Decreto nº 9.797/2019 confere a seguinte redação ao dispositivo que cuida das armas de uso permitido e de uso restrito, modificando o anterior Decreto nº 9.785/2019:
Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
I – arma de fogo de uso permitido – as armas de fogo semiautomáticas ou de repetição que sejam:
a) de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libraspé ou mil seiscentos e vinte joules;
b) portáteis de alma lisa; ou
c) portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
II – arma de fogo de uso restrito – as armas de fogo automáticas, semiautomáticas ou de repetição que sejam:
a) não portáteis;
b) de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules; ou
c) portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
Como se vê, a alteração promovida no ponto inclui o calibre nominal nos conceitos, de modo a possibilitar o estabelecimento de critérios mais claros de aferição da energia cinética gerada. Mantém, todavia, a alteração de classificação de diversas armas (.40, .45 e 9mm, por exemplo), que passaram a ser consideradas de uso permitido.
Além da redução da pena – em razão da alteração da política de desarmamento, ocasionada pelo Decreto anterior e mantida agora pelo Decreto nº 9.797/2019, e que retroage para beneficiar o agente (art. 5º, inciso XL, da Constituição da República e art. 2º, parágrafo único, do Código Penal) [3] –, faz-se uma síntese comparativa entre o regime jurídico-penal conferido ao porte e à posse de arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei nº 10.826/2003), tidos como hediondos, e ao porte e à posse de arma de fogo de uso permitido (arts. 12 e 14 da Lei nº 10.826/2003), crimes comuns nos quais passaram a se amoldar diversas condutas, após a edição do Decreto nº 9.785/2019, que ampliou a definição de arma de fogo de uso permitido, mesmo quando consideradas as alterações do Decreto nº 9.797/2019:
CRIME HEDIONDO OU EQUIPARADO (art. 16 da Lei nº 10.826/2003) |
CRIME COMUM (arts. 12 e 14 da Lei nº 10.826/2003) |
Não admite fiança |
Em regra, admite fiança. |
Não admite a concessão de anistia, graça e indulto |
Admite a concessão de anistia, graça e indulto |
Para a concessão de livramento condicional, o condenado não pode ser reincidente específico em crimes hediondos ou equiparados e deve cumprir mais de 2/3 da pena. |
Para a concessão de livramento condicional, o apenado deve cumprir 1/3 da pena, se reincidente em crime doloso, ou 1/2, se não reincidente em crime doloso. |
Para a progressão de regime, o condenado deve cumprir 2/5 da pena, se for primário, e 3/5, se for reincidente. |
Para a progressão de regime, o condenado deve cumprir 1/6 da pena, mesmo que reincidente. |
De outro vértice, as condutas de porte e posse praticadas com armas que, com o advento do Decreto nº 9.797/2019, voltem a ter definição como de uso restrito – como no caso do fuzil T4, nos termos em que amplamente divulgado pela imprensa – retomam a classificação mais gravosa – do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento –, serão, quando praticadas a partir de agora, novamente consideradas hediondas.
Entretanto, a posse e o porte sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar verificados antes do novo Decreto nº 9.797/2019 continuam a merecer o tratamento mais benéfico e tipificação nos arts. 12 e 14 da lei 10.826/2003, como deflui do texto do Decreto anterior (Decreto nº 9.785/2019), em razão da vedação à retroatividade da norma penal prejudicial ao réu (novatio legis in pejus).
Aliás, já assentávamos, no texto publicado anteriormente, que mesmo a ulterior revogação do Decreto – e também a sua modificação, como levado a efeito agora – não suplantaria os efeitos benéficos retroativos já produzidos. O quadro apenas se altera com efeitos prospectivos.
Da mesma forma, eventual procedência do pedido formulado na ADPF nº 581, sob a relatoria da ministra Rosa Weber também não terá o condão de obstar os efeitos retroativos já operados [4], pois não se pode apequenar a garantia individual prevista no art. 5º, inciso XL, da Lei Maior, preservando-se os efeitos favoráveis aos acusados e condenados.
No alvo ou não, estes foram os resultados produzidos pelos Decretos nº 9.785 e 9.797.
William Akerman Gomes é Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ). Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ex-Procurador do Estado do Paraná (PGE/PR). Ex-Especialista em Regulação de Aviação Civil (ANAC). Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE/RJ). Ex-Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Aprovado em concurso público para Defensor Público do Estado da Bahia (DPE/BA), para Advogado do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e para Advogado da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante da banca de penal e processo penal do I Concurso para Residência Jurídica da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor e coordenador de obras jurídicas pela Editora JusPodivm. Professor de cursos preparatórios para concursos e fundador do Curso Sobredireito (@curso_sobredireito).
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Notas:
[1] http://www.justificando.com/2019/05/09/analise-juridica-novo-decreto-abranda-repressao-a-crimes-do-estatuto-do-desarmamento/
[2] A norma penal em branco ou primariamente remetida deve ser entendida como aquela em que o preceito primário é incompleto e se subdivide em homogênea ou em sentido amplo e em heterogênea ou em sentido estrito. A homogênea é aquela cujo complemento advém da mesma instância legislativa da norma penal, da mesma fonte formal. Como exemplo, tem-se o art. 237 do CP (v. art. 1521 do CCb). A heterogênea é aquela cujo complemento advém de instância legislativa diversa da norma penal. O clássico exemplo é a Lei nº 11.343/2006, que não define o que é droga. A definição é encontrada em Portaria da ANVISA que traz as substâncias assim consideradas. O mesmo se dá com os arts. 12, 14 e 16 da Lei nº 10.826/2003, afetados pelo Decreto Presidencial. Trata-se também de normas penais em branco, porquanto se deve recorrer ao regulamento da lei para que seja possível obter o conceito de arma de fogo, acessório ou munição de uso permitido, restrito ou proibido. Para que se possa compreender de forma mais clara o que se expõe, imaginemos que uma pessoa seja presa em flagrante por posse ou porte ilegal de arma de fogo, trazendo consigo uma .40. Nesse caso, a capitulação da conduta – se enquadrada nos arts. 12 ou 14, mais brandos e com pena de 1 a 3 anos de detenção ou de 2 a 4 anos de reclusão, respectivamente, ou no art. 16 do Estatuto do Desarmamento, mais grave e com pena de 3 a 6 anos de reclusão – perpassa exatamente pela análise do que o ato infralegal considera como de uso permitido, restrito ou proibido. Apenas após esse cotejo é que se pode concluir se se trata dos crimes dos arts. 12, 14 ou 16 da Lei nº 10.826/2003 e, portanto, obter a correta tipificação criminal do fato delituoso.
[3] A redução da pena com a desclassificação deve ser pretendida perante os juízos da execução (art. 66, inciso I, da LEP e Súmula STF, verbete nº 611), da condenação ou destinatários dos recursos, conforme já tenham as decisões sido acobertadas ou não pelo manto da coisa julgada.
[4] E por mais de uma razão. A uma, porquanto o pedido formulado não hostiliza a modificação das definições de arma de fogo de uso permitido, restrito e proibido. A duas, porque o próprio Estatuto do Desarmamento remete ao domínio infralegal essa disciplina, inexistindo inconstitucionalidade nesse particular.