Em paralelo à desumanização do cidadão em meio ao autorreferencialismo estatal, o governo Bolsonaro é kafkiano até mesmo em seus erros grotescos
Arte: Daniel Caseiro – colagem de foto de Brasilia e quadro O Castelo dos Pirineus, de René Magritte.
Por Gabriel de Aguiar Tajra
No que tange à literatura acerca das disfunções e irracionalidades do funcionamento estatal, o escritor tcheco Franz Kafka é, notadamente, reconhecido nome no âmbito internacional.
As análises literárias que se desdobram sobre as nomeadas três principais obras do autor (A metamorfose, O Castelo e O processo) extraem, para além das complexidades individuais de cada qual, a abordagem acerca das problemáticas da burocracia como elemento comum, tal qual a desordem administrativa, as deformações dos institutos políticos, e mesmo o desencontro para com as finalidades almejadas pela institucionalização e estruturação do Estado.
O homem, em face do autorreferencialismo estatal – isto é, de uma organização voltada para si própria, sem mais o referencial que a fundamenta: o próprio homem –, acaba desumanizado, afastado de sua própria representação governamental, razão pela qual tais obras foram bem nomeadas por Modesto Carone como “trilogia de ferro”, ante a desiludida e fria, senão ferrenha, crítica à realidade humana em seu contexto.
Dentre tais, a obra O castelo chama notória atenção por sua condizente metáfora da realidade dos Estados modernos, senão o contrário: a realidade clama à análise da obra, ante as necessidades e anseios políticos do povo por seu aperfeiçoamento.
Isto porque a narrativa do anti-herói K. é bem traduzida à uma realidade humana. O personagem, ao ser convidado para prestar seus serviços de agrimensura pelo Conde, autoridade máxima do castelo, vai ao vilarejo que o circunscreve para seu respectivo cumprimento.
Entretanto, em que pese os constantes esforços despendidos por K. em contatar os oficiais do castelo e alertá-los de sua prontidão para imediata prestação dos serviços, a obra desdobra-se, até o fim, na constante incomunicabilidade do sujeito com as autoridades.
Primeiro porque os próprios cidadãos desconhecem os mecanismos legais para tanto – vez que “nossas leis não são universalmente conhecidas, [mas] são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina” [1], ainda que dotada de caráter impositivo a todos –, bem como o próprio caminho de acesso ao castelo, na metáfora esposada pelas longas caminhadas infindáveis do personagem sem nunca resultar em quaisquer indícios de aproximação, em clara fundamentação do porque o termo kafkaniano assumiu conotação labiríntica.
Segundo porque as autoridades oficiais, além de trabalharem especificamente em restritas áreas burocráticas do castelo, sem qualquer intercomunicabilidade entre os próprios funcionários – motivo pelo qual não puderam ajudá-lo –, são dotadas de grande distanciamento com a plebe do vilarejo, o que as torna inacessíveis.
Assim, a obra em menção permite uma irrestrita análise das questões atinentes à entropia do aparelhamento estatal, perpassando sua alta complexidade ilógica, dotada de uma estruturação organizativa em cadeia incomunicável – tanto em seu âmbito interno, quanto externo –, impenetrável e não eficiente.
Ainda mais, permite mesmo uma análise psicológica do consciente (vilarejo) e inconsciente (castelo) humano, na constante busca pela realização de seus anseios sociais, na figura do êxito na prestação dos serviços às autoridades, obtendo seu respectivo respeito e aceitação social, mas sempre desencontrada e desiludida pelas dificuldades que o circundam.
O resultado da obra não poderia ser outro ante a impotência do homem senão a desestruturação de K. do seu contexto social e a sua desumanização em uma dimensão axiológica, bem representada na fala da senhoria do albergue em que fica hospedado: “O senhor não é do castelo, o senhor não é da aldeia, o senhor não é nada. Infelizmente, porém, o senhor é alguma coisa, ou seja, um estranho” [2].
Ora, a realidade do atual desgoverno não é outra. Pela análise de sua dimensão estrutural, o governo é um “deserto de ideias”, nas palavras do próprio Presidente da Câmara, antes constituinte da base aliada.
Em poucos dias no comando, o governo buscou impor às escolas a leitura do slogan presidencial, efetuou grande corte no orçamento da educação, envolveu-se em contínua crise política referente à corrupção de seus próprios membros e perdeu apoio de grande parte da base aliada por intrigas geradas via twitter.
Neste ínterim, pela perspectiva valorativa do homem, este se encontra afastado, desconsiderado e, por conseguinte, desumanizado. A desconsideração da opinião pública pelo Presidente da República chegou ao nível deste declarar, em veículo midiático de abrangência nacional, que os manifestantes partícipes da oposição à decisão austera de cortes nas verbas da educação seriam nada mais que “idiotas úteis e massa de manobra”.
Neste mesmo sentido, a oposição política é tratada como inimiga, conflitante, desvirtuando-se da fundamental organização democrática contemporânea, pautada, dentre outros pontos axiais, na legitimação eleitoral obtida pelo confronto de ideias divergentes e na formação de grupos de pressão, capazes de movimentar a esfera pública.
Quanto à tutela governamental àqueles que sempre estiveram à margem da atenção do Estado e de suas políticas públicas – digam-se os grupos hipossuficientes social e economicamente –, o governo já anunciou medidas repressivas e punitivas, consoante se denota, respectivamente, da postura adotada acerca da demarcação de terras indígenas e da ampliação da rigidez do sistema penal, que deve “prender e manter preso”, como afirmou o Presidente.
O direito penal, que ora deve pautar-se na mínima interferência e função ressocializadora, retoma seu diálogo com o medo e o ideal inquisitório, mediante enrijecimento das penas e prisões, em uma realidade carcerária de reconhecida superlotação [4].
Como fruto da péssima gestão, o Presidente obteve a façanha de, em menos de cinco meses de governo, conquistar uma desaprovação de 36,2% -que a avaliaram em “ruim” ou “péssimo” – superando a aprovação de tão somente 28,6% daqueles que a avaliaram em “ótima” ou “boa”, conforme pesquisa exclusiva da consultoria Atlas Político [5].
Em que pese a suposta confusão meramente terminológica de seu Ministro da Educação, em audiência no Senado Federal, fazer referência à iguaria árabe ‘kafta’, ao pretender citar o autor em menção, a situação bem reflete a realidade do desgoverno.
Em paralelo à desumanização do cidadão em meio ao autorreferencialismo estatal, o ministro foi capaz de transmutar toda a genialidade do autor tcheco em um inanimado espeto de carne, à ironia tragicômica da possível analogia entre a obra e a iguaria.
Gabriel de Aguiar Tajra é estudante do 6º semestre de Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP), com atuação acadêmica em direito eleitoral, filosofia do direito e presença ativa em organizações estudantis e da juventude municipal.
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Notas: