Edição e arte: André Zanardo
Paulo Augusto Oliveira Irion, juiz de direito
O título proposto ao capítulo do verdadeiro embrulho – e não projeto anticrime -, que é objeto desta abordagem, apresentado pelo Ministério da Justiça, “Medidas para endurecer o cumprimento das penas”, evidencia seu viés vingativo, cruel e desumano.
Endurecer o quê? É possível tornar mais indigno e desumano o cumprimento de penas no Brasil? As recentes centenas de mortes em motins e rebeliões, em vários estados da federação, têm que servir de alerta, não podendo ser banalizadas, como ensina Nando Reis, na música Rock n Roll, quando escreve:
Em presídios superlotados
Homens trancafiados,
sendo decapitados
Seus corações arrancados
Já não causam mais nenhum estranhamento
Sem falar de que o sistema penal é irracional, alcançando, de forma seletiva, os miseráveis e as minorias, já que ele “programa a criminalização praticamente de toda a sociedade – todas as pessoas – e dispõe de meios para fazê-lo com uma minoria que ele seleciona entre os mais vulneráveis (os que não tem poder de resistir à sua ação)”[1].
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As condições de aprisionamento no Brasil são degradantes e não alcançam os objetivos propostos pela Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos e lei de execução penal. Não há dúvida de que o sistema da execução penal tem que ser repensado a partir da efetiva proteção dos direitos humanos, de manutenção da dignidade das pessoas presas, afastando-se a crueldade no cumprimento das penas.
Superlotação carcerária; ausência de assistências pessoais e materiais às pessoas presas; falta de oportunidades de trabalho e de estudo durante o período de cumprimento de pena; comando das unidades prisionais nas mãos das facções criminosas; grande número de motins e rebeliões com mortes de pessoas presas, bem como de agentes do Estado; verdadeiras guerras urbanas fora dos muros das prisões pelo comando de espaços; esses são a tônica do quadro caótico do aprisionamento de pessoas no Brasil.
A situação é tão grave que o Brasil já sofreu várias intervenções de organizações internacionais determinando a tomada de providências tendentes a modificá-la e o Supremo Tribunal Federal já declarou que o sistema prisional brasileiro, nas condições atuais, é tão grave que deve ser considerado como sendo um estado de coisas inconstitucionais.
Mesmo assim, diante deste cenário, que é de um verdadeiro colapso, as propostas contidas no projeto tendem a piorar de vez essa conjuntura de melancolia e dor.
Em apertada síntese, faz-se um resumo das propostas contidas no projeto, acerca do tema execução penal.
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Principia-se pela imposição do regime fechado como início de cumprimento da pena para diversas hipóteses. Esta proposta é claramente inconstitucional, uma vez que fere o princípio da individualização da pena, além de contrariar entendimentos sedimentados no Supremo Tribunal Federal, que já julgou inconstitucionais dispositivos legais que imponham, como regra, a obrigatoriedade do regime fechado para o início de cumprimento da pena.
A seguir, a proposta autoriza o juiz a preestabelecer na sentença, a partir das operadoras do artigo 59 do CP, qual o prazo mínimo que o réu deverá cumprir no regime fechado ou semiaberto para, depois, progredir de regime, agredindo, com isto, os princípios constitucionais do juiz natural e da individualização da pena. Progressão de regime é matéria de competência do Juiz da execução penal. A individualização da pena tem que ser feita em sede de execução penal.
Na parte que propõe a modificação da lei dos crimes hediondos, a exigência de cumprimento de 3/5 de pena para progressão de regime, nos crimes que tiverem resultado morte, é absolutamente despropositada, configurando flagrante bis in idem, pois nessas hipóteses já houve a imposição legal de uma pena bem mais rigorosa, além da classificação como crime hediondo, em decorrência do resultado letal.
Em relação a esta mesma lei, a progressão de regime ficará subordinada ao mérito do condenado e a constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir, sem explicitar de que forma será verificado este mérito. Assim, abre um leque de possibilidades, deixando imprecisos os métodos para a obtenção deste marcador e trazendo, ainda, o renascer da equivocada ideia de que um exame possa determinar se há ou não como presumir se o apenado delinquirá novamente, pois esta tarefa foge das atribuições dos profissionais incumbidos de realizar tais exames.
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Na continuação da proposta de alteração da lei dos crimes hediondos há proibições que vão de encontro às finalidades da execução penal, que é a recuperação e reintegração das pessoas condenadas.
Em relação às pessoas presas do regime fechado proíbe a autorização de prestar serviço externo, presentes os requisitos constantes do artigo 36 da LEP, o que diante das diminutas oportunidades de trabalho interno, sonega-lhes o direito ao trabalho, que é assegurado em lei e na Constituição Federal, como forma de respeito de sua dignidade e para prepará-la para o retorno ao convívio social.
Verifica-se, nas proibições do regime semiaberto, que restam banidas as hipóteses de saída temporária para visita à família e participação em atividades que o preparam para o retorno ao convívio social. O afastamento destas hipóteses afigura-se um abominável retrocesso, capaz de retirar direitos que, sabidamente, possibilitam uma melhor recuperação social da pessoa condenada, atentando contra os objetivos de progressividade da pena.
No mais, o projeto endereça a obrigatoriedade de início de cumprimento em estabelecimentos penais de segurança máxima, no caso de o apenado ser líder de organização criminosa armada ou que tenham armas à sua disposição, bem como traz a proibição de progressão de regime ou concessão de livramento condicional aos condenados por integrar organização criminosa, o que deve ser rechaçado por engessar a atividade jurisdicional, uma vez que retira do Juiz de Execução Penal a tarefa de, examinando o caso concreto, decidir de acordo com suas convicções a respeito da forma e local onde se dará o cumprimento da pena, precipuamente por violar o princípio da individualização da pena que é de índole constitucional.
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No que se refere ao regime jurídico dos presídios federais, apontando-se que o RDD fere a Constituição Federal e o artigo 5º.6. da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a proposta aumenta o rigor da segregação, revela flagrantes violações ao direito de defesa e da intimidade, afastando, com este isolamento mais rigoroso, a pessoa presa de uma readaptação social.
Deve-se devolver mais esperanças, tanto para a pessoa condenada, como para a sociedade. As mudanças apresentadas no projeto “endurecem” a caótica situação, que já gera tantas mortes e tristezas, e atinge, de forma seletiva, na grande maioria dos casos, pessoas negras e socialmente marginalizadas.
Em síntese, o projeto tem índole de vingança, propondo o cumprimento de pena com maior crueldade, afastando-se bastante da ideia de que as leis devam criar mecanismos para a reintegração social da pessoa condenada, devolvendo-a melhor de quando entrou para o sistema prisional.
Não se pode esquecer que o aumento do tempo de aprisionamento, que é marcante na proposta apresentada, em verdade, tenta impor às pessoas condenadas, com o aprisionamento, uma morte reversível, retirando-as, temporariamente, do mundo possível dos homens, calando-as e abafando-as, mas que, em alguns aspectos e circunstâncias, pode tornar-se irreversível[2].
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Traz-se, ainda, a experiência de quem já sofreu as agruras da prisão, mais precisamente o que disse Nicolae Steinhardt, em sua obra “O diário da felicidade”, referindo-se ao tempo na prisão, dizendo: “Tortura sem instrumentos, através do colocar face a face, no vazio, duas entidades: o homem e o tempo puro. Tortura pelo tempo. O Homem e o Tempo, nada mais do que isso: enchê-lo.”
O aumento da segregação – tanto em relação ao número de pessoas presas, quanto ao tempo de aprisionamento – além de não ter reduzido a criminalidade, caminha na contramão das metas de inclusão social, que se concretizam por meios de estratégias de reintegração social, cujo núcleo central está nos processos criativos e construtivos de diálogos[3].
É obrigação democrática aplicar as penas com humanismo e manutenção da dignidade da pessoa condenada, para reintegrá-la ao convívio social e mantê-la longe da prática criminosa.
Enfim, há único caminho a ser trilhado: o da estrada da esperança, da dignidade, do absoluto respeito à Constituição Federal, afastando-se do trajeto da vingança do tempo presente, tempo sombrio e de insensatez, em que a própria imparcialidade do Poder Judiciário é tratada, por alguns, com irrelevância e desfaçatez.
Paulo Augusto Oliveira Irion, juiz de direito do 1º Juizado da 1ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre; Especialista em Ciências Criminais e mestre em Direitos Fundamentais; Membro da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD).
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Notas:
[1] (ZAFFARONI, E. Raúl. Criminologia: apoximación desde un margen. Bogotá: Themis, 1998, p. 18).
[2] (TIMERMAN, Natália. Desterros – Histórias de um hospital-prisão., São Paulo: Elefante, 2017)
[3] (Sá, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Execução Penal. Proposta de um modelo de terceira geração, São Paulo: Saraiva, 2015. p. 366).