Imagem: Agência Brasil / Ivan Alvarado
Por Flavia D´Urso
As razões para não se tolerar o estado das coisas parecem muito evidentes. O manuseio dos jornais, por si só, informa a dimensão da catástrofe da qual fomos lançados.
Não custa repisar, no entanto, que há um aprofundamento indecente das injustiças sociais e da desigualdade de fortunas; um modo de criação das riquezas pelas dívidas e especulações que desqualifica o trabalho e a classe de trabalhadores; um objetivo de consumo desenfreado que desumaniza as relações sociais e, mais recentemente, a destruição de parte da selva amazônica e de seu meio ambiente (que parece sensibilizar um pouco mais a classe média brasileira …).
E, claro, o maior precedente de despreparo e de autoritarismo da extrema direita eleita no cargo da Presidência da República.
Há fome, pobreza, desemprego, estupidez, racismo, obscurantismo, violações de direitos, política de segurança genocida, seletividade e um sistema judicial conivente e covarde. As vaidades e as idiossincracias que movem as decisões do STF são estarrecedoras e tem leitura obrigatória no último livro de Felipe Recondo e Luiz Weber, “Os onze: O STF, seus bastidores e suas crises”, Companhia das Letras,2019.
De fato, os protestos importantes, a tomada das ruas, as articulações políticas mais exitosas e maiores pressões sociais seriam algo não só urgente e necessário, mas justificado, esperado e até natural.
Mas, atônitos, constatamos que não há reação à altura diante de um verdadeiro desastre histórico cuja percepção é a de consequências irreversíveis. Ninguém ou quase ninguém se levanta.
O problema não é a desobediência, o problema é a obediência[1] ou a verdadeira questão não é saber por que as pessoas se revoltam, mas porque não se revoltam[2].
Estas oportunas provocações iniciam o livro (Des)Obedecer, do filósofo francês Frédéric Gros, da Ubu Editora,2018.
A inversão é muito interessante porque a sua reflexão, antes da desobediência política, escava algumas razões da obediência.
Eis a suas pistas:
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É só na obediência que nos agrupamos, nos assemelhamos, que não nos sentimos mais sós. A obediência faz a comunidade. A desobediência divide;
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Desobedecer é manifestar uma parte de animalidade e rudez. São os “anormais” de Michel Foucault. Os estudantes turbulentos, operários preguiçosos ou sindicalizados, os presos… aqueles que são “incorrigíveis” diante dos quais os aparelhos disciplinares admitem a impotência. Obedecer, portanto, é a afirmação da humanidade. A desobediência é o revés: a selvageria e o instinto anárquico;
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E na esteira do “civilizatório”, a distinção kantiana entre “disciplina” e “instrução” permanece ainda muito preservada. A disciplina é condição fundamental do aprendizado.
As premissas e estas investigações de Gros talvez sejam o que há de mais instigante no livro. A conclusão é de que a obediência é chave e principal arma do poder político, o que, por si só, não contém muito ineditismo, mas após percorrer Dostoievski, La Boétie, Sófocles, Platão, dentre outros pensadores de máxima excelência, encontramos o destino de sua trajetória para desobedecer: a resistência ética e a democracia crítica.
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É preciso, primeiramente, dar-se conta da submissão. As pistas das razões da obediência direcionam para este sentido.
A partir daí, a proposta é a de que uma resistência aos desmandos e ao caos seja a manifestação de uma liberdade cívica, ou seja, um ponto de partida ético do qual se autoriza interiormente a aceitar ou recusar tal ordem, tal decisão, tal ação. Esta é uma resistência ética.
O segundo passo é a contestação da tradição contratualista que funda o ordenamento político moderno. O pacto social tem uma evocação mítica e o consentimento social é quase uma metafísica da convivência social. Este questionamento então é fundamental para o que Gros chama de uma democracia crítica.
Alinhavemos esses eixos de pensamento: obedecemos porque, provavelmente, não queremos nos isolar, para parecermos “normais” e educados para a “civilização”. Não se submeter à catástrofe do primitivismo da era Bolsonaro, ou seja, desobedecer hoje, seria iniciar uma guerra desarticulada e talvez insustentável. As alternativas ponderadas são a resistência ética aliada a uma democracia crítica.
Vejamos, então, mais detalhadamente os elementos que integram os conceitos de uma desobediência que se pode dizer racionalizada. A seguir, a compreensão do que seja a democracia crítica.
A submissão tem relação direta com a história da disciplina. Trata-se de um exercício de poder político que se estende desde o início do cristianismo até os dias atuais e consiste em métodos que permitem o controle minucioso de operações do corpo que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade e utilidade[3].
Fábricas, escolas, hospitais e prisões – instituições fundamentais ao funcionamento da sociedade industrial e capitalista – se estruturam e têm como lógica de funcionamento as técnicas e táticas oriundas deste processo de disciplinarização. O indivíduo que não se adequa às técnicas de adestramento destas organizações precisa ser corrigido. Aqueles que escapam desta normalização imposta é considerado, portanto, um anormal. Ser “incorrigível” é o reverso, desta forma, daquele que é ajustado, normal e mais próximo da afirmaç&atil de;o de humanidade.
Quando Kant nos ensina a amadurecer, ou seja, aquele caminho a percorrer para o esclarecimento, o domínio racional do conhecimento (a Aufklarung), sentencia :
… “ a obediência é absolutamente necessária, porque prepara a criança para o respeito às leis, que deverá seguir certamente como cidadão, ainda que não lhe agradem”[4]
O que quer dizer então uma resistência ética diante de corpos assujeitados e do aprendizado de que a obediência é etapa anterior e necessária para a construção de uma autonomia?
Trata-se de uma desobediência na perspectiva de uma ética do político. Ética significando a maneira de como cada um se relaciona consigo mesmo, como cada sujeito político se constrói e trabalha para, posteriormente, envolver-se nas ações políticas de enfrentamento [5].
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Construir ou, na formulação de Foucault, constituir um sujeito político significa praticar a liberdade como experiência, como vivência. O que o autor afirma é que “a liberdade dos homens não é nunca assegurada pelas instituições e leis que têm por função garanti-la”[6]. Não porque elas são ambíguas, mas porque a ‘liberdade’ é o que se deve exercitar. Quer dizer, a liberdade não se reduz ao livre-arbítrio, à mera escolha entre duas coisas já dadas, ou a uma questão de vontade, mas se expressa na ação mesma, ou seja, enquanto se age.
É por esta razão que a liberdade assume um caráter de prática: porque ela é a única fiadora possível para a sua realização.
A ” garantia da liberdade é a liberdade”[7], explicita Foucault.
O conjunto ou a soma de práticas de pessoas livres no exercício de sua liberdade é que torna possível e viabiliza a própria liberdade, que não é resultado de um arranjo arquitetônico e tampouco uma construção suntuosa com fins liberadores, mas sim produto de um exercício individual e comum. Foucault não atribui a nenhum elemento externo, sejam às leis ou ao espaço, a prática efetiva da liberdade e, muito menos, fornece uma condição prévia para a sua realização como, por exemplo, uma tomada de consciência.
A liberdade é efetivamente uma prática e sua condição são pessoas no exercício de sua liberdade.
Na suma: aprende-se a ser livre materializando-se o exercício da liberdade. É treino mesmo. Essa é a concepção de liberdade cívica que propicia, desde a Grécia antiga até os desdobramentos dos estudos preciosos de Foucault, a tomada de decisão quando a experiência do intolerável se adensa até se tornar uma evidência social.
Tomemos como exemplo o movimento das Diretas Já. Foi através do USO de direitos (expressão, reunião e associação) a conquista de um dos maiores pilares da democracia, ou seja, o voto popular. A liberdade de que tratamos não se resume, portanto, somente a um sentimento ou estado de espírito mas, principalmente, em efetividade politica e social.
A insidiosa submissão é ainda causa de ruína também da teoria do “pacto republicano” e de todas as suas instituições. Para Gros, quando o contrato social é evocado como origem mítica, quando o consentimento se torna uma “metafísica” da convivência social, o sistema legal encobre uma realidade pontual e sempre permeada de injustiça e violência.
Com efeito, a promessa do consentimento para uma boa convivência social no regime democrático, especialmente no contexto posterior as eleições de outubro de 2018, parece ter sido um engodo. Constatamos, na verdade , que este regime é algo muito diferente de uma forma institucional caracterizada de boas práticas ou procedimentos, inspirada pela defesa das liberdades, aceitação da pluralidade ou o respeito pelas decisões majoritárias.
Claro que a democracia reúne tais condições mas, para além disto, é preciso desvencilhar-se do pensamento herdado de uma tradição contratualista de que ela é um Estado acabado [8]. Muito pelo contrário: a democracia não é um regime ou uma forma política paralisada, mas sim um processo crítico que vive em constante e conflitiva expansão e que não está reduzida ao desenho das instituições ou à governabilidade.
A democracia, assim como é o inexorável funcionamento do poder, deve vir de baixo, das relações de força na família, na escola, no sistema judiciário e econômico.
É no contexto destas forças relacionais que se deve praticar a liberdade para constituir-se como sujeito político sem submissão e amadurecido na forma mesmo proposta por Kant, como uma vitória, primeiramente pessoal e, só posteriormente, coletiva. Esta apropriação em rede afasta inclusive a sensação do isolamento quando se desobedece.
E esta subjetividade política também é responsável pelo imperioso questionamento de uma estrutura provisória e anacrônica como se supõe ser o pacto republicano. É à partir deste reconhecimento que se abrem possibilidades das absolutamente imprescindíveis participações políticas no processo de construção da cidade (pólis). O grande número de eleitores deste ano para os Conselhos Tutelares em SP talvez seja um início.
Desobedecer é, pois, uma tentativa de liberdade e uma força subversiva sempre nova capaz de “por pelo avesso os valores habituais e os hábitos valorizados”[9].
Flavia D´Urso é Defensora Pública aposentada. Mestre em Processo Penal e Doutora em Filosofia Política pela PUC/SP.
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Notas: