Imagens: Agência Brasil – Arte: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Roberto Portugal de Biazi
O artigo 6.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos[1] assegura, assim como o artigo 8.1 do Pacto de São José da Costa Rica[2], o direito a um juiz ou tribunal independente e imparcial.
No julgamento do Caso Buscemi vs. Itália, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) afirmou “que as autoridades judiciais devem exercer a máxima discrição em relação aos casos com os quais lidam, a fim de preservar sua imagem como juízes imparciais. Essa discrição deve dissuadi-los de fazer uso da imprensa, mesmo quando provocados. São as exigências mais altas da justiça e a natureza elevada do ofício judicial que impõem esse dever. O Tribunal considera, como a Comissão fez, que o fato de o Presidente do Tribunal ter utilizado publicamente expressões que implicavam que ele já havia formado uma visão desfavorável do caso do recorrente antes de presidir o julgamento, é manifestamente incompatível com a imparcialidade exigida por qualquer tribunal. As declarações do presidente do tribunal justificavam objetivamente os temores do recorrente quanto à sua imparcialidade”[3].
Vale destacar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), à qual o Brasil se vincula por força do Decreto nº. 4.463/2002, acolhe a posição do TEDH quando o assunto é imparcialidade do juiz, inclusive com menção expressa a julgados da corte europeia a respeito. Por isso que, no julgamento do Caso Apitz Barbera e Outros vs. Venezuela, assentou-se que o “juiz deve não estar sujeito a influências indevidas, pressões, ameaças ou interferências, diretas ou indiretas, mas única e exclusivamente movido conforme e pelo Direito. E não basta que assim esteja apenas subjetivamente, é preciso que ele também pareça assim, de modo objetivo, aos olhos do demandado e da comunidade. Nessa lógica, a recusa não deve ser vista, destaca a Corte, necessariamente, como um julgamento sobre a retidão moral do recusado, mas como uma ferramenta que brinda confiança àqueles que estão submetidos à intervenção de órgãos que devem aparentar serem imparciais”[4].
Relativamente ao Ex-Presidente Lula, logo que condenado pelo então Juiz Federal Sérgio Moro no assim denominado Caso Triplex, o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), Desembargador Federal Thompson Flores, externou à imprensa sua convicção de que a sentença era “irrepreensível”, “irretocável”[5]. Não bastasse isso, pontuou que a defesa de Lula seria teria sido “exaltada, em algumas situações”. É importante anotar que, já naquele momento, suas declarações exigiam redobrada cautela, não só pela função que ocupava, como porque havia a possibilidade concreta de ele vir a receber eventuais recursos especial e extraordinário de Lula para, na qualidade de presidente da corte, realizar o exame de admissibilidade recursal.
Mais recentemente, referido Desembargador Federal deixou a presidência do TRF-4 e passou a compor justamente a 8ª Turma da Corte, preventa para julgar os feitos conexos à Operação Lava Jato, substituindo a cadeira até então ocupada pelo Desembargador Federal Victor Laus[6]. Vale dizer, desde que assumiu o assento, Thompson Flores estava ainda mais suscetível a participar do julgamento de eventuais recursos de Lula.
Pois foi justamente o que aconteceu: ontem, dia 27 de novembro de 2019, foi levado a julgamento o recurso de apelação do Ex-Presidente Lula, referente ao Caso Sítio de Atibaia, igualmente inserido no contexto ou conexo à Operação Lava Jato e, portanto, ao Caso Triplex, inclusive de modo a justificar a alegada prevenção do juízo. Neste contexto, o Desembargador Federal Thompson Flores votou no sentido de acompanhar o relator para não apenas manter a condenação de Lula, como também para exasperar sua pena ao patamar de 17 (dezessete) anos de reclusão, em regime inicial fechado[7].
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Seguíssemos os padrões mínimos estabelecidos pelas cortes internacionais no que diz respeito à imparcialidade judicial, o Des. Fed. Thompson Flores teria sido imediatamente afastado da causa por suspeição. Aliás, o precedente acima mencionado do TEDH trata de situação praticamente idêntica, revelando-se extremamente claro neste sentido.
Até se poderia argumentar que a entrevista concedida pelo então Presidente do TRF-4 tratou especificamente do Caso Triplex, razão pela qual não haveria que se falar em suspeição no caso levado a julgamento ontem, referente ao sítio de Atibaia. Muito embora tal fato realmente não possa ser desconsiderado, deve-se salientar que a fala externada à época revela muito mais uma suspeita de parcialidade no que se refere à falta de equidistância entre as partes do que propriamente ao objeto do processo.
Outrossim, o próprio Superior Tribunal de Justiça possui precedente no sentido de estender o reconhecimento da suspeição por fundado receio de parcialidade a processos conexos[8], tal qual ocorre nos casos Triplex e Sítio de Atibaia, ambos inseridos no contexto da Operação Lava Jato. Realmente, essa solução se mostra a mais adequada para evitar uma violação à garantia da imparcialidade do juiz ou tribunal, impedindo dúvidas às partes ou à sociedade da confiabilidade do julgamento.
Enfim, apesar de o Caso Lula como um todo estar permeado de inúmeras situações que ensejam pertinentes questionamentos acerca da quebra de imparcialidade[9], não é de se olvidar que, também no julgamento ocorrido ontem, houve nulidade absoluta ante a participação de magistrado suspeito.
Roberto Portugal de Biazi é Mestrando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP, Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas e Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
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Notas:
[1] “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”
[2] “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela”.
[3] Tradução livre dos parágrafos 67 e 68 da sentença do TEDH.
[4] GIACOMOLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 251-252.
[5] Fato noticiado, inclusive, pelo Justificando: http://www.justificando.com/2017/08/07/presidente-de-trf-4-afirma-que-sentenca-de-moro-sobre-lula-foi-irretocavel/.
[6] Vide, por exemplo: https://www.ocafezinho.com/2019/05/23/thompson-flores-entra-na-turma-que-julgara-lula-no-caso-atibaia/ ou https://www.oantagonista.com/brasil/thompson-flores-e-confirmado-na-turma-da-lava-jato-no-trf-4/.
[8] Vide ementa: HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO (ARTIGO 155, § 4º, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL). ALEGADA SUSPEIÇÃO DO MAGISTRADO RESPONSÁVEL PELA CONDUÇÃO DA AÇÃO PENAL. ROL EXEMPLIFICATIVO. EXISTÊNCIA DE OUTRA EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO OPOSTA CONTRA O MESMO JUIZ E QUE FOI JULGADA PROCEDENTE. FATOS QUE INDICAM A QUEBRA DA IMPARCIALIDADE EXIGIDA AO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA.
- As causas de suspeição previstas no artigo 254 do Código de Processo Penal não se referem às situações em que o magistrado está impossibilitado de exercer a jurisdição, relacionando-se, por outro lado, aos casos em que o togado perde a imparcialidade para apreciar determinada causa, motivo pelo qual doutrina e jurisprudência majoritárias têm entendido que o rol contido no mencionado dispositivo legal é meramente exemplificativo.
- O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já havia reconhecido a suspeição reclamada em anterior exceção por fatos que evidenciam a quebra da imparcialidade do magistrado com relação ao paciente.
- A arguição de suspeição do juiz é destinada à tutela de uma característica inerente à jurisdição, que é a sua imparcialidade, sem a qual se configura a ofensa ao devido processo legal.
- Ordem concedida (HC 172.819/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/02/2012, DJe 16/04/2012)
[9] O escândalo da “Vaza Jato” está aí para comprovar uma sistemática violação à garantia da imparcialidade no bojo da Lava Jato, e há até mesmo questionamentos apresentados pela defesa a respeito de eventual suspeição do Desembargador Federal Relator, Dr. João Gebran Neto.