Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil
Por João Pedro de Paula
A volta às aulas em 2016 foi diferente para os estudantes da rede pública estadual do Rio de Janeiro. O Estado estava em plena crise, com ajustes fiscais que resultaram no corte de gastos sociais e até atrasos no pagamento dos salários dos servidores públicos. A crise viria a se agravar a ponto do Governo decretar estado de calamidade pública, às vésperas da Olimpíada, com receio de um possível colapso nos serviços públicos.[1]
Indignados, os secundaristas fluminenses promoveram diversas manifestações e assembleias, em busca de melhores condições para o ensino. Em especial, por aparelhos de ar-condicionado, diante da alta temperatura em salas de aulas que chegavam a ser superlotadas e até mesmo sem ventiladores ou janelas.
Os professores também se mobilizaram e optaram por uma greve que teve início em 02 de março de 2016[2]. A Secretaria de Educação (SEEDUC) apontou que o ato somente iria prejudicar os alunos dos professores grevistas.
A resposta da SEEDUC demonstra o papel do Estado e consequentemente do direito no sistema econômico capitalista. Para Marx, o direito “é considerado como um instrumento ideológico e político de dominação da classe capitalista (burguesia) sobre a sociedade”[3]. Constitui, portanto, um meio de reprodução do sistema econômico, no qual a paralisação dos professores seria prejudicial aos interesses da classe dominante, diante da interrupção do processo de circulação de mercadorias.
A partir de março, os secundaristas foram além e trouxeram para o Rio uma tática de mobilização utilizada pelos estudantes de São Paulo em 2015. No dia 21, os alunos do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes anunciaram a ocupação da escola, após aprovação em assembleia.
Como uma faísca, a primeira ocupação incendiou a luta de classes na educação e inspirou outros secundaristas a ocuparem a suas escolas. A primavera secundarista chegou ao Rio, fundada na base do movimento estudantil e em escolas que nem possuíam grêmios estudantis. O movimento que ficou conhecido como “Ocupa Escola” foi um exemplo de democracia radical. Os participantes tomavam decisões apenas através de assembleias, nas quais cada estudante tinha voz e voto.
O governo do Rio de Janeiro buscou reprimir as mobilizações ao apontar que os estudantes eram invasores, junto à mídia tradicional. O processo de deslegitimação ainda promoveu conflitos entre alunos através do discurso de que eles seriam apenas prejudicados, tendo que vir a estudar aos sábados e nas férias[4]. Por sua vez, os estudantes demonstravam o dia-a-dia das ocupações a partir de suas próprias perspectivas, com o apoio de mídias alternativas e através de suas próprias páginas em redes sociais.
Com a expansão do movimento, o Estado requereu a reintegração de posse de algumas escolas junto a Justiça Estadual para conter o movimento. Mas sofreu uma derrota na arena judicial, demonstrando que a correlação de forças havia mudado. Os estudantes tiveram o apoio da Defensoria Pública e do Ministério Público, que se posicionaram pela legitimidade da mobilização. Anteriormente, a própria Defensoria Pública havia ajuizado uma ação cautelar para impedir intervenções policiais nas escolas ocupadas.
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Ainda que a arena judicial tenha sido favorável ao movimento de ocupações, o direito permanece sendo um instrumento de classe. “O direito criado e aplicado pelos aparelhos do Estado cumpre uma determinada função social; é um instrumento de reprodução da desigualdade social, apesar de poder ser utilizado algumas vezes pelos dominados como uma arma contra a classe dominante”. [5]
Durante a ocupação da SEEDUC pelos estudantes em maio de 2016, a Tropa de Choque foi utilizada para reprimir o ato e desocupar o órgão de forma violenta. A ordem veio da cúpula do governo estadual, sem qualquer autorização ou responsabilização posterior pelo sistema de justiça.
A primavera secundarista foi mais uma demonstração do poder popular, que culminou na ocupação de mais de 80 escolas na capital e no interior. O processo incentivou ocupações em outras regiões do país e até mesmo fora do Brasil. As conquistas foram amplas: verbas iniciais para reformas emergenciais nas escolas ocupadas; a eleição para a diretoria das escolas; o dobro da carga horária de sociologia e filosofia; a gestão democrática do espaço escolar; o fim do sistema de avaliação meritocrático (SAERJ); e a inclusão de um simulado para os vestibulares, entre outras mais específicas.
Algumas ocupações ainda deixaram como legado a fundação de um grêmio estudantil para pautar as próximas reivindicações. Hoje, os grêmios estão presentes na maioria dos colégios estaduais do Rio[6]. As conquistas provenientes das ocupações secundaristas demonstraram a importância da organização popular, com a qual estudantes periféricos conseguiram transformar sua própria realidade.
A luta por direitos é fundamental em nossa sociedade, seja pelo surgimento de novos direitos, seja pela aplicação adequada dos já positivados em normas jurídicas. Contudo, há uma ressalva essencial a ser feita. Ao analisar a obra “O socialismo jurídico”, Alysson Mascaro disserta que “é possível lutar por direitos e conquistar alguns deles, mas isso é pontual; o problema é gozar com essas poucas conquistas. O capital segue com o controle do poder, suas formas balizam a sociabilidade, a estrutura da exploração é capitalista, então, o que eventualmente se ganha rapidamente se perde”[7].
No mesmo ano em que a primavera secundarista floresceu no Rio, a Emenda Constitucional n° 95 foi promulgada, resultando no congelamento das verbas para saúde e educação em um período de 20 anos. O pêndulo da luta de classes pode ser favorável para a conquista de direitos em certos momentos. Mas eles podem ser retirados com facilidade em outros.
A luta por direitos tem relevância pela busca por melhores condições de vida como necessidades imediatas. Mas é necessário compreender, sobretudo, a importância da superação do sistema capitalista, para construção de uma sociedade em que cada um tenha suas necessidades asseguradas.[8]
João Pedro de Paula é Graduando na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, Colaborador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e Diretor de Direitos Humanos na União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro (UEE-RJ); participou da ocupação do primeiro colégio estadual no RJ em 2016; estagiário na PGE-RJ.
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Notas:
[1] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/06/governo-do-rj-decreta-estado-de-calamidade-publica-devido-crise.html
[2] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/03/profissionais-da-educacao-do-rj-entram-em-greve-diz-sindicato.html
[3] SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Página 44
[4] https://educacao.uol.com.br/noticias/2016/04/12/ocupacao-de-escolas-tira-direito-da-maioria-de-estudar-diz-governo-do-rj.htm
[5] SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Página 89.
[6] https://extra.globo.com/noticias/rio/gremios-estudantis-voltam-crescer-nos-colegios-publicos-23869425.html
[7] MASCARO, Alysson Leandro. A crítica do Estado e do direito: a forma política e a forma jurídica. In: Curso livre Marx-Engels: a criação destruidora. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo, Carta Maior, 2015. Página 23
[8] MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. Página 32