Foto: Valter Campanato / Agência Brasil – Arte: Gabriel Pedroza / Justificando
Por João Victor de Araújo Tocantins
O ataque de Deputado Federal, de modo institucional, a Estado que é parceiro diplomático do Brasil configura abuso da prerrogativa de imunidade parlamentar conferida pela Constituição da República Federativa do Brasil?
Recapitulando. Quando o jornal britânico The Telegraph noticiou que China havia superado os Estados Unidos na posição de maior parceiro comercial do Brasil em 09.05.2009, não se cogitou a relevância que surtiria 11 anos depois.
Antes do advento desta Constituição Federal, a primeira vez que um parlamentar perdeu o mandato em virtude de quebra de decoro parlamentar foi em 1946, ocasião em que Edmundo Barreto Pinto trajou smoking e cueca para falar acerca de assunto político na extinta revista Cruzeiro.
De lá para cá, diversas foram as tentativas de, no curso do processo político, retirar o mandato ora outorgado pela população votante. No dia de ontem, 18.03.2020, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (SP/PSL), proferiu ataque à República Popular da China, por meio do Twitter.
Na acusação, alegou que: “Quem assistiu Chernobyl vai entender o q ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. […] +1 vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas q salvaria inúmeras vidas. […] A culpa é da China e liberdade seria a solução”.
Rechaçando o alegado, o Embaixador chinês respondeu: “A parte chinesa repudia veementemente as suas palavras, e exige que as retire imediatamente e peça uma desculpa ao povo chinês. Vou protestar e manifestar a nossa indignação junto ao Itamaraty e a Câmara dos Deputados”.
Destaco, neste particular, o principal trecho da fala virtual do parlamentar: ditadura chinesa. Pois bem. A palavra ditadura é atribuída pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa como sendo substantivo, ao passo em que o dicionário Michaelis atribui significado de ditadura como sinonimizado de tirania.
Vamos além. Na hermenêutica jurídica, o método de interpretação gramatical é suficiente à interpretação detida da palavra do parlamentar. Assim, ao acusar um parceiro diplomático do Brasil a um governo dito tirano, incorre na previsão contida no art. 55, § 1º, da CRFB/88,tendo em vista que é incompatível com o decoro parlamentar o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional.
A prerrogativa ora abusada é a da imunidade material conferida aos parlamentares do Congresso Nacional pelo art. 53 da Carta Política. Todavia, o caráter antes tido como absoluto sofreu densa mitigação pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mitigando a expressão “por quaisquer”, tendo em vista que os deputados e senadores somente são invioláveis quando as opiniões, as palavras e os votos expressados guardarem relação com o exercício do mandato, hipótese que inexistiu neste caso.
Leia também:
Bolsonaro e a crise democrática que se avizinha
Cumpre repisar que a imunidade absoluta só tem fundamento quando no recinto da Casa Legislativa. Quando proferido discurso fora do recinto e não guardando pertinência com o mandato parlamentar, é relativa a imunidade. Confira-se:
DIREITO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO INTERNO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMUNIDADE PARLAMENTAR. PRECEDENTE. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a imunidade parlamentar material incide de forma absoluta quanto às declarações proferidas no recinto do Parlamento e os atos praticados em local distinto escapam à proteção absoluta da imunidade somente quando não guardarem pertinência com o desempenho das funções do mandato parlamentar. (…) 3. Embargos de declaração recebidos como agravo interno a que se nega provimento. (RE 443953 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 19/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-143 DIVULG 29-06-2017 PUBLIC 30-06-2017)
No caso em tela, no qual houve ataque à Estado de Direito do qual o Brasil é parceiro diplomático e econômico, impossível não fazer remissão ao texto constitucional, quanto à previsão dada pelo poder constituinte originário sobre princípios que regem as relações internacionais da República Federativa do Brasil: solução pacífica dos conflitos (art. 4º, VII, CF) e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, IX, CF).
O Deputado Eduardo Bolsonaro violou o princípio da solução pacífica dos conflitos quando incitou ódio nas redes sociais em um momento de pandemia declarada pela Organização Mundial da Saúde. Derradeiramente, vilipendiou o princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, tendo em consideração que a propagação de afirmação inverídica agrava o quadro de extrema tensão vivenciada pela repercussão do vírus COVID-19 (o Coronavírus).
Deste modo, firme em que existe necessidade de cautela e serenidade em momento de crise, calcadas na harmonia social que inspira o Preâmbulo da Carta Política, é inconcebível autorizar que parlamentar incite ódio em sede de contenção de crise dada pelo vírus global, incorrendo, assim, no abuso de prerrogativa previsto no texto constitucional.
Prequestiona-se, pois, a violação ao art. 55, § 1º c/c art. 53, caput. Todos da Constituição Federal.
João Victor de Araújo Tocantins é pesquisador em Direito Constitucional. Membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais, presidido pelo Ministro Carlos Ayres Britto (UniCEUB).
Assinando o plano +MaisJustificando, você tem acesso integral aos cursos Pandora e ainda incentiva a nossa redação a continuar fazendo a diferença na cobertura jornalística nacional.