Imagem: Antônio Cruz / Agência Brasil – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Pedro Abrantes Martins
Nos últimos tempos a instabilidade dá força a um intenso debate acerca de regimes políticos. Autores alertam para a chegada de uma terceira onda de autocratização que se difunde e ganha força em diversas nações. O apego a golpes militares como figura única de ruptura democrática leva o senso comum a fechar os olhos para o emprego de manobras autoritárias em todo globo.
Enquanto isso, ataques a instituições públicas, polarização tóxica, protestos pró-autoritarismo e o aumento da violência política se intensificam e se camuflam em democracias. Sob o pretexto do exercício de liberdade de expressão, indivíduos fomentam a erosão democrática de dentro dos próprios regimes. Em 2020, uma crise sanitária provocada pelo surto do novo coronavírus se soma às crises política e econômica pré-existentes em diversos países, agravando as condições de desenvolvimento de sistemas institucionais já instáveis e comprometidos. Conforme se deflagram estados de emergência, chefes de governo acumulam poderes e põem em xeque o Estado de direito pleno em diversas nações do globo.
Ao final da década de 1980, Francis Fukuyama[1] escrevia sobre o “Fim da História”. Em sua obra, o autor tratava das viradas democráticas na Europa e América Latina. O fim do bilateralismo, elemento oriundo da Guerra Fria, levava a crer que o mundo todo convergia em sentido à eterna adoção de um único modelo de governo: a democracia constitucional liberal. Ocorre que, como bem se sabe, a história não tem fim. Dezesseis anos depois, os principais centros de avaliação da democracia voltavam a detectar uma queda no desempenho dos Estados. A partir de então, desde 2006, diversos países apresentam um constante declínio nos scores da Freedom House – organização americana que conduz pesquisas sobre democracia, liberdade política e direitos humanos.
Em 2013, David Landau[2] cunha o termo constitucionalismo abusivo a fim de narrar o fenômeno marcado pela utilização de institutos do próprio direito constitucional (como emendas constitucionais e a substituição de cartas magnas como um todo) para erodir a democracia liberal. Kim Lane Scheppele[3], por sua vez, aborda a questão ao introduzir o termo “Democraturas”. Esse regime híbrido que se localiza entre democracias e ditaduras é apresentado como sucessor dos obsoletos golpes militares. Neste novo modelo de governança, líderes investem em legitimação enquanto negam elementos básicos do constitucionalismo. Os “FrankEstados” – uma referência à Victor Frankenstein de Mary Shelley – que resultam da hipocrisia das democraturas adotam as piores práticas legais aceitas pela comunidade internacional a fim de comprometer o Estado constitucional através de suas próprias ferramentas. A tática resulta em enorme sucesso, pois, ainda que gere certo desconforto, não dá razões suficientes para algum tipo de intervenção.
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Mais recentemente, o Democracy Report 2020[4] elaborado por instituto V-Dem declarava que, pela primeira vez no século, o número de autocracias superava o das democracias. Já são 92 países (54% da população global) e 2.6 bilhões de pessoas vivendo sob regimes autoritários. Uma nova onda de autocratização provoca um aumento vertiginoso nestes índices. Brasil, Burundi, Hungria, Rússia, Sérvia e Turquia são alguns dos países que lideram este processo obscuro. A literatura especializada demonstra que líderes provocam erosão democrática gradativa, dificultando a identificação do momento exato em que a democracia acaba. Estes se escondem atrás de eleições e constituições radicalmente alteradas, pois sabem que desta forma se mantêm dentro de “parâmetros constitucionais” perante a comunidade internacional. Evidentemente que os “democratores” não vão atrás de comprometer direitos como primeira medida, mas buscam, primeiramente, poder ilimitado através do comprometimento do sistema de freios e contrapesos, para então atuarem como bem entenderem.
Em junho de 2019, Vladimir Putin declarava que o liberalismo estava “obsoleto”. Para Scheppele[5], o constitucionalismo liberal é uma marca danificada. Se o modelo já encontrava adversidades em condições normais, o surto de SARS-Cov-2 escancara tensões pré-existentes, bem como deflagra novas emergências de diversas naturezas. Quando o governo chinês constrói dois hospitais em poucos dias, dá-se início a um discurso que afirmava a superioridade de autocracias em face a democracias. A agilidade nas ações do poder público do país serviu para que indivíduos de todo o mundo passassem a questionar a eficácia de um regime político sobre outro e, ainda, chefes de Estado se amparassem na aclamada experiência chinesa a fim de legitimar viradas autoritárias.
Um estudo[6] conduzido pelo Policy Department for Citizens’ Rights and Constitutional Affairs do Parlamento Europeu reconheceu que a região sofreu diversos impactos em matéria de democracia, Estado de direito e direitos fundamentais. Dez de seus Estados-membros declararam “estado de emergência”. Ainda, seis adotaram regimes similares, como o “estado de perigo” húngaro. No país, o primeiro-ministro Viktor Orbán consolida seu projeto de autocratização, pondo fim às aparências de um governo democrático na Hungria. O chefe de Estado polonês Jaroslaw Kaczynski, por sua vez, avança com mudanças em cortes, criando uma câmara de “controle extraordinário” encarregada de autenticar as eleições previstas para 28/06/2020. Restrições de movimento, comprometimento de liberdade de expressão, mídia, informação e de assembleia são elementos que se manifestam não apenas na Europa, mas em todos os continentes.
Na América Latina, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro encabeça a lista de líderes sob holofotes por conta das constantes ameaças ao Estado democrático de direito. Em março de 2020, o Democracy Report já relatava que uma polarização tóxica, protestos pró-autocracia e o aumento da violência política se difundiam por todo território nacional. Ataques orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas durante a pandemia foram a gota d’água para que o Brasil perdesse o status de democracia plena perante o instituto sueco V-Dem, passando a ser reconhecido como mera democracia eleitoral. Enquanto o país se torna o novo epicentro da Covid-19, Bolsonaro convoca protestos contra o Judiciário e o Legislativo, fomenta manifestações contrárias ao isolamento social e ataca veículos de comunicação.
No que tange a pandemia, no entanto, o argumento autoritário é facilmente desconstruído. Um estudo promovido pelo The Economist levantou dados de todas as pandemias desde 1960, concluindo que as doenças costumam ser mais letais em não-democracias. Ademais, em investigação conduzida na Universidade de Oxford, descobriu-se que, ainda que líderes autoritários tenham adotado lockdowns mais estritos, as democracias foram 20% mais eficientes na redução de mobilidade – isto ocorre pois, como apontam, autocracias não conseguem implementar bem estas medidas. Outro ponto importante é que governos autoritários fracassam na efetivação de boas estratégias de comunicação de risco (pilar fundamental para a gestão de crises desta natureza). A adoção destas medidas vincula-se à confiança em autoridades e à clareza acerca de informações científicas. Neste sentido, a ausência da livre circulação de informações e a proliferação de fake news – elementos comumente presentes em autocracias – comprometem profundamente a situação de países que passam por emergências sanitárias.
Para além do surto de coronavírus, no entanto, deve-se manter um olhar atento. Golpes modernos não demandam ação militar, pois acontecem em ondas. Limites constitucionais nunca podem ser ultrapassados. Crimes de responsabilidade, ataques a instituições, violência política e polaridade extrema não devem ser normalizados. A comunidade internacional tem assistido à deturpação de preceitos constitucionais básicos sem reagir a qualquer uma dessas violações. Se a ordem transnacional quiser parar estes governos, deve buscar novas ferramentas de diagnóstico para identificar quando um sistema constitucional estiver em apuros, bem como buscar consensos-base mais concretos e rígidos acerca das normativas aceitáveis. Desta forma, sabe-se, não há que se esperar a tentativa de golpe militar para sancionar a atuação do Executivo, pois o que quer que esteja acontecendo, está acontecendo agora. Isto posto, conclui-se, não é exagero falar em ditadura.
Pedro Abrantes Martins é acadêmico do curso de direito da UFPR. Pesquisador bolsista do CNPq. Membro do grupo de pesquisa Constitucionalismo Abusivo e Crise Democrática.
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Notas:
[1] FUKUYAMA, Francis. The End of History. National Interest, Summer 1989, pág. 3-18
[2] LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. FSU College of Law, Public Law Research Paper No. 64. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2244629##. Acesso em 07/06/2020.
[3] SCHEPPELE, Kim Lane. Worst Practices And The Transnational Legal Order (Or How To Build a Constitutional “Democratorship” in Plain Sight’), The University of Toronto, 2016. Disponível em: https://www.law.utoronto.ca/utfl_file/count/documents/events/wright-scheppele2016.pdf. Acesso em: 07/06/2020.
[4] LÜHRMANN, Anna et al. Autocratization Surges – Resistance Grows. Democracy Report 2020. Varieties of Democracy Institute (V-Dem), março de 2020. Disponível em: https://www.v-dem.net/media/filer_public/f0/5d/f05d46d8-626f-4b20-8e4e-53d4b134bfcb/democracy_report_2020_low.pdf. Acesso em: 08/06/2020.
[5] SCHEPPELE, Kim Lane. Op. cit., p. 4.
[6] MARZOCCHI, Ottavio. The Impact of Covid-19 Measures on Democracy, the Rule of Law and Fundamental Rights in the EU. Monitoring Group on Democracy, Rule of Law, Fundamental Rights. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2020/651343/IPOL_BRI(2020)651343_EN.pdf. Acesso em 08/06/2020.