Foto: Alex Pazuello / Prefeitura de Manaus – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Mayara Rodrigues de Almeida
Conforme dados do IBGE (2010), os povos indígenas do Brasil são compostos por 305 (trezentos e cinco) etnias, falam 274 (duzentos e setenta e quatro) línguas e totalizam aproximadamente 897.000 (oitocentos e noventa e sete mil) indivíduos. Conforme estimativa da FUNAI[1], os indígenas estão localizados em todas as Unidades Federativas do Brasil, sendo que cada etnia possui o seu desenvolvimento cultural, seus rituais, etc. Há, portanto, uma vasta diversidade cultural a ser preservada, especialmente no contexto da pandemia ocasionada pela COVID-19, dada a vulnerabilidade em que os povos indígenas estão inseridos e também considerando serem imunologicamente suscetíveis a novos vírus e doenças.
Nesta lógica, a partir da definição de quem vai viver ou morrer, inclusive sob uma ótica de descartabilidade que jamais deveria ter existido, observa-se a total falta de políticas direcionadas à saúde dos povos indígenas. Tal abtenção apresenta-se como uma forma de controle social através da morte: a chamada necropolítica, Mbembe (2011)[2]. No caso do Brasil, o direcionamento do extermínio aos povos indígenas ocorre desde a chegada dos colonizadores ao país. Assim, o decréscimo da população indígena, salienta-se, ocorreu primordialmente com a disseminação de doenças trazidas pelos colonizadores, além dos confrontos diretos nas chamadas guerras de conquista e de apresamento, cujo objetivo era garantir a exploração da mão-de-obra indígena através do trabalho escravo, sendo que tal condição foi abolida somente no ano de 1831, através da Lei de 27.10.1831[3].
Na atualidade, o controle destes povos parte da tentativa de refuncionalização da sua força para a dominação/exploração, e da implementação de uma política que incansavelmente enfraquece a proteção ao meio ambiente. Desta forma, há uma evidente relativização quanto aos corpos passíveis de (in)existirem na sociedade brasileira, dadas as mudanças políticas, econômicas e sociais que interferem em sua dinâmica, além dos interesses voltados para a exploração territorial. Neste cenário, há um claro recorte racializado pautado na cultura do embranquecimento que renega corpos indígenas e negros diante da necropolítica, e que faz destas as carnes mais baratas do mercado, como bem disse Elza Soares.
Insta salientar que o direitos relativos aos costumes, organização social, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam estão previstos no art. 231, da Constituição da República Federativa do Brasil. Para Souza Filho (1998)[4], no entanto, a construção dos Estados nacionais latino-americanos foi fortemente influenciada pelo padrão eurocêntrico, dada a cultura do branqueamento, do Estado único e, consequentemente, de um direito único. Com exceção da Bolívia que se constitui em um Estado Plurinacional e reconhece os governos autônomos indígenas.
Neste contexto desolador, Conforme Castro (2019)[5], paira um sério risco de “genocídio ameríndio” calcado em estratégias de assimilação/aculturamento do ser diferente quando, em sua raiz, nos deparamos com práticas completamente racistas em relação aos indígenas. À vista disso, o que a história demonstra quando falamos de América Indígena é de suma importância para evitarmos o extermínio das populações indígenas novamente. Neste sentido, a título exemplificativo, a população indígena na América apresentava-se entre 70 e 90 milhões de pessoas quando da chegada dos colonizadores e, após, totalizou apenas 3,5 milhões de indígenas, conforme referiu Galeano (1970).
Neste âmbito, para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a COVID-19 chegou nos territórios indígenas em um ritmo de crescimento que impactou de forma gravíssima as aldeias. Até 03 de setembro de 2020 foram contabilizados 29.609 (vinte e nove mil seiscentos e nove) casos confirmados de contaminação pela COVID-19 em indígenas, com 156 (cento e cinquenta e seis) povos afetados e 779 (setecentos e setenta e nove) óbitos[6].
Outrossim, conforme o brilhante levantamento efetuado pelo Instituto Socioambiental[7], a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), distribuída em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIS) sofre com a falta de estrutura e de recursos do Estado brasileiro para o enfrentamento da COVID-19. Conforme o Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais, as Terras Indígenas mais vulneráveis a expansão da COVID-19 são:
Disponível aqui
Ainda, conforme a conjuntura expressada pelo Instituto referido, a expansão da COVID-19 nas aldeias também ocorreu através das SESAIS como fonte de contaminação. Neste trágico cenário de especulação do capital internacional voltado ao meio ambiente brasileiro, a expansão da grilagem e dos garimpos nas proximidades das Terras Indígenas também possibilitou o aumento dos casos interiorizados nas aldeias, uma vez que a invasão das Terras Indígenas aumentou exponencialmente durante a pandemia. Cunha (2012)[8], refere que a garantia das terras, o apoio legal e sanitário possuem um profundo impacto na retomada do fortalecimento demográfico das aldeias impactadas por epidemias/pandemias, inclusive se tais medidas forem observadas com o respaldo da Convenção 169 da OIT (Decreto 10.088/2019)[9], sobre Povos Indígenas e Tribais.
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Isto posto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), os demais movimentos sociais e representantes legais ingressaram com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709[10], de Relatoria do Ministro Roberto Barroso, onde a decisão monocrática, publicada em 02/09/2020 na Medida Cautelar na ADPF, homologou parcialmente o Plano de Barreiras Sanitárias apresentado pela União, a fim de proteger as comunidades indígenas contra a COVID-19. Portanto, a partir desta nova decisão, a União deverá:
“(…)1. No que respeita ao Plano de Barreiras Sanitárias, deve a União:
- incluir as TIs do Vale do Javari, Yanomami, Uru Eu WawWaw e Arariboia como Prioridade 1;
- considerar a necessidade de isolamento de invasores;
- dar início ao funcionamento das barreiras sanitárias que integram a Prioridade 1 no curso do mês de setembro de 2020;
- dar início ao funcionamento das barreiras sanitárias que integram a Prioridade 2 no curso do mês de outubro de 2020;
- indicar as terras indígenas que são objeto da Prioridade 3 e o prazo para início de funcionamento de tais barreiras, compatível com a situação de urgência de uma pandemia;
- apresentar os Planos de Contingência previstos no item 8 da decisão proferida em 06.08.2020 por este Relator (DJe de 12.08.2020);
- explicitar, no Plano de Barreiras Sanitárias, e assegurar que todos os representantes dos CONDISIs que participem das Salas de Situação Local sejam necessariamente indígenas;
- explicitar o tempo e as estratégias mais seguras de quarentena para ingresso em terras indígenas e cuidar para que elas cheguem ao conhecimento daqueles que atuam em tais terras;
- adotar a metodologia postulada pelo CNJ, detalhando a execução das ações relacionadas ao Plano, sem prejuízo da implantação das barreiras sanitárias no prazo ajustado;
- apresentar tal detalhamento, quanto às terras que integram o objeto da Prioridade 1 até final de setembro; e o detalhamento da Prioridade 2 até final de outubro;
- promover o contínuo aprimoramento do Plano.
- No que respeita ao cumprimento da cautelar, quanto a povos indígenas localizados em terras não homologadas, deve:
(i) identificar das áreas e territórios nesta situação;
(ii) dimensionar as equipes e os insumos necessários ao atendimento;
(iii) dimensionar os fluxos de assistência entre SESAI e SUS;
(iv) adequar a força de trabalho;
(v) promover a readequação orçamentária dos DSEIs (Nota Técnica em Resposta à Intimação nº 2636/2020, p. 41-42);
(vi) fornecer os dados discriminados sobre os atendimentos realizados em cada terra, indicando datas e quantitativos.
- No que respeita ao contínuo aprimoramento do Plano e a seu monitoramento, deve restabelecer o funcionamento da Sala de Situação e fixar periodicidade de reuniões compatível com uma situação de pandemia.(…)”
Por todo o exposto e certos de que defender os povos indígenas significa proteger o futuro das próximas gerações, cumpre-nos acompanhar os próximos andamentos e a forma como a União implementará o Plano junto às comunidades indígenas abarcadas. Não perpetuar o senso colonizador constitui – no cenário atual – frear as políticas que fortalecem a necropolítica, que corroboram com medidas que facilitam a desregulamentação ambiental e que, consequentemente, autorizam o genocídio dos povos indígenas do Brasil.
Mayara Rodrigues de Almeida é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSS/UFRGS); especializanda em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPG Dir. do Trabalho/UFRGS); Bacharela em Direito pela PUCRS (2016/01); Advogada Trabalhista (OAB/RS 108.494-B)
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Notas:
[1] FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Saúde. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/saude>. Acesso em: 03 set. 2020 às 09h13min.
[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica. Barcelona: Melusina, 2011. Traducción de Elisabeth Falomir Archambault.
[3] Vide texto em Malheiro; A escravidão no Brasil, p. 236 s.; ARNAUD, Aspectos da Legislação sobre os índios do Brasil, p. 17; BRASIL, Leis, Decretos, etc, Assuntos indígenas, Coletânea de Leis, atos e memoriais referentes ao indígena brasileiro, p. 70 e seguintes. (KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010. p. 144).
[4] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005.
[5] CASTRO, Eduardo Viveiros de. In: Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/593413-viveiros-de-castro-estamos-assistindo-a-uma-ofensiva-final-contra-os-povos-indigenas>. Acesso em: 03 de set. de 2020 às 09h38min.
[6] Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – Emergência Indígena. Disponível em: https://emergenciaindigena.apib.info/dados_covid19/. Acesso em 03 de setembro de 2020, às 10h47min.
[7] INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL.Covid-19 e os Povos Indígenas. Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/ . Acesso em 03 de setembro de 2020, às 14h52min.
[8] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. 1.ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
[9] BRASIL. Decreto nº 10.088, de 05 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 03 set. 2020 às 10h06min.
[10] BRASIL. Fonte: Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 709. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5952986. Acesso em 03 de setembro de 2020 às 14h25min.