Imagens: Antônio Cruz / Agência Brasil – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando
, uma coluna dos juízes e juízas da AJD
Por Luiz Eduardo Oliveira de Faria
O site Justificando, por esta coluna sugestivamente chamada Cláusula Pétrea, proporcionou-me a feliz oportunidade de dar vazão às minhas modestas e sempre despretensiosas reflexões sobre os temas jurídicos, políticos e sociais com os quais me deparo no cotidiano.
Assim, em 2019, escrevi algumas linhas sobre o papel do juiz criminal no Estado Democrático de Direito e tive a imensa felicidade de receber afáveis críticas sobre o que me propus a falar naquela ocasião.
Volto, pois, à carga, já que recebi, no alvorecer deste ano de 2020, uma verdadeira convocação da grande, e por mim admirada, Desembargadora Kenarik Boujikian.
Quando da disposição das datas disponíveis à publicação, vi uma que muito me chamou a atenção: 26 de outubro de 2020. Algum motivo especial? Creio que sim. Esta data marca o dia de meu aniversário, oportunidade em que completo 42 anos de uma vida altos e baixos.
Mas logo me veio a dúvida: escrever sobre o quê? Processo Penal e suas agruras? Direito Penal e suas distorções? Criminologia? Sociologia? Confesso aos leitores que nada disso me seduziu, em especial porque a data me permitiria, quem sabe, uma “licença poética”.
Desta forma, cogitei redigir um pequeno e modesto texto reflexivo, em forma de desabafo. Esta ideia mostrou-se interessante. Nunca havia feito nada neste sentido e segui o firme propósito de assim agir.
Tudo transcorria normalmente até que uma hecatombe global aconteceu. Fácil deduzir o que foi, prezados: a pandemia do Covid-19. Ela modificou minhas intenções? Não, ela ironicamente não o fez. Ela, na verdade, fortaleceu meu desejo de traduzir em palavras as percepções que tenho de nossa realidade, já que aguçou meu olhar crítico e excitou ainda mais minha mente inquieta. É o que pretendo fazer, com sua licença, amigo leitor.
E começo com uma conclusão arrebatadora e frustrante: falhamos como país, como sociedade e como nação.
A pandemia da Covid-19, para além de considerações de ordem científicas e sanitárias, acabou revelando aos olhos propositadamente desatentos, ou não, o quanto nossas raízes escravocratas são profundas.
Ora, ora, dileto leitor, pintou-se, diante de nossas vistas, um quadro impressionante mostrando que trinta e oito milhões de brasileiros eram invisíveis e que beiravam a condição de indigência humana!! Tais pessoas passaram a depender quase que por completo de ajuda financeira governamental, sofrendo males de toda ordem para ter em mãos um mínimo de dinheiro para a subsistência.
Evidenciaram-se, ainda mais, exemplos de egoísmo e mesquinhez de nossas elites. Elas, em atitude de desprezo, completa falta de empatia e alteridade, deleitavam-se em festas particulares, em pleno período de distanciamento social, quase que exigindo das classes populares a constante exposição a risco de contaminação, tudo para manter funcionando a “sua” máquina econômica.
Explodiu o número de casos de violência contra a mulher, reforçando-se a noção de que este fato é uma autêntica chaga social e um dos reflexos inaceitáveis de uma sociedade truculenta, excludente, preconceituosa e machista.
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Vimos os casos de contaminação pelo novo coronavírus alastrarem-se nas masmorras penitenciárias brasileiras enquanto as autoridades responsáveis pela temática carcerária faziam vista grossa. De forma incrível, pelo grotesco cinismo, multiplicaram-se as declarações públicas minimizando os riscos de contágio, isto quando o avanço da doença não era deliberadamente ignorado.
Percebemos a perda de inúmeros postos de trabalho, fenômeno este com maior incidência nas classes sociais subalternas, enquanto que os verdadeiros donos do poder econômico aumentavam seus lucros e suas riquezas. Tal circunstância elevou a concentração de renda e a desigualdade social brasileira a níveis ainda mais intoleráveis.
Presenciamos repetitivas demonstrações governamentais de desprezo às regras de preservação da saúde eis que, em mais de uma oportunidade, insistiu-se em enaltecer o negacionismo, o obscurantismo, opondo-se, temerariamente, a vida aos preceitos da chamada ordem econômica.
No que tange à questão ambiental, o País, em plena pandemia, passou a arder em chamas e nossos ecossistemas passaram a sofrer risco de danos irreversíveis. E, neste lastro, vimos, mais uma vez, autoridades tentando justificar o injustificável.
Os casos de desvio de recursos públicos que seriam utilizados nas frentes de combate ao estado de calamidade na saúde pública, segundo a chamada grande imprensa, pulularam dia após dia. Um caos… uma autêntica tristeza.
Tivemos a frustrante oportunidade de presenciar, com preocupante constância, direitos e garantias fundamentais, conquistados a duras penas neste País, serem solapados, aviltados, vilipendiados… enfim, negados.
A impressão que tenho, confesso, é que voltamos séculos em nosso alegado processo histórico de evolução político-social. Tenho a sensação de que voltamos à barbárie. Menospreza-se, hoje, a educação, a cultura e principalmente a paz. Cultua-se, pasme, meu amigo leitor, a violência, a intolerância a arbitrariedade, a truculência, o preconceito, o deboche, o escárnio e a antipatia. Parece que se quer aniquilar o diferente. Hoje, enaltece-se o fascismo… simples assim.
Neste momento, o leitor poderia pensar, após ler estas palavras que confesso não trazerem alento algum: é muito pessimismo!!! Sim. É pessimismo mesmo. Confesso que as horas de meditação a fio e intensa leitura durante o período de distanciamento social me tornaram extremamente desalentado com aquilo que infantilmente convencionou-se chamar de novo normal. Mas pergunto, incrédulo: Que normal? Que novo? Assumamos: nada foi, é ou será normal neste País. No Brasil, sempre se naturalizou a existência de bolsões de miséria, a fome, a existência de cidadãos invisíveis, o desprezo pelas mulheres, pelos pobres, pelos negros, pelos periféricos, pelos gays, pelas lésbicas… Enfim, aqui, sempre se buscou o extermínio dos indesejáveis.
Nunca, nunca, por mais que vozes lúcidas alertassem, abandonamos nosso passado histórico marcado pela chaga de ter sido o último país do ocidente a abolir a escravidão formal. Abolimos mesmo? E o racismo institucionalizado, silencioso, cruel e implacável?
Confesso que não tenho respostas a estas inquietudes. Falhamos, meu querido leitor…falhamos como civilização brasileira, se quiserem assim pensar.
E no ocaso destas lamúrias, fica meu sincero pedido de desculpas a você que conseguiu chegar ao final deste texto. Eu precisava escrever estas palavras…
Assim, apesar de hoje ser uma data particularmente especial, já que completo mais uma primavera, nada a comemorar. Cabe-nos apenas refletir, sentir e tentar de todos os modos resistir, resistir e resistir…
Luiz Eduardo Oliveira de Faria é juiz de direito da vara criminal, da infância e juventude e das execuções penais – Comarca de Timóteo/MG
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