Imagem: Reprodução – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Saulo Dutra de Oliveira
O ultraje à jovem Mariana Ferrer, parte de um processo penal viciado, no qual ela se inicia como vítima e é sobrevitimizada outras vezes por misoginia, machismo, violência psicológica, agressividade, enfim. No entanto, para além da análise moral e ética, que pode ou não ser amparada pelo sistema de justiça, há farta juridicidade em nosso sistema normativo, que protege o caso.
Em primeiro lugar, torna-se clarividente que este escrito se remete à exposição pública, por veículos de mídia, de caso concreto de recente julgamento envolvendo acusação em processo penal de estupro, cujo resultado foi pela absolvição do réu. O processo e a sentença não serão analisados.
Porém, a exposição do caso revelou trechos da audiência, quando a possível vítima é claramente ofendida em sua honra, intimidade, integridade psíquica e dignidade humana. Neste momento, não se conhece os demais atos daquele dia ou de outros atos processuais. Escreve-se com base neste recorte de cena, tornado público, podendo, assim, sofrer futuras retificações.
Há o ator processual que executa as investidas em face da então vítima da relação processual (advogado de defesa do réu) e representantes do Estado, inertes.
Leituras detidas do estatuto de ética da OAB e das leis orgânicas das instituições públicas denotam ênfase em declarar a forma legal e regulamentar de agir de seus profissionais e servidores públicos, respectivamente: o tratamento, com urbanidade e o compromisso com a defesa dos Direitos Humanos.
A atuação do advogado, do membro do Ministério Público e do magistrado, pelo que indicam as informações de mídia, serão levadas à análise de seus órgãos de classe/conselhos.
Código de Ética e Disciplina OAB
Art. 31. O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia.
Art. 33. Parágrafo único. O Código de Ética e Disciplina regula os deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional e, ainda, a publicidade, a recusa do patrocínio, o dever de assistência jurídica, o dever geral de urbanidade e os respectivos procedimentos disciplinares.
Lei Orgânica da Magistratura do estado de Santa Catarina
Art. 93. Compete ao juiz de direito no crime:
II – presidir a instrução criminal (…)
Art. 102. Compete ao juiz de direito em geral:
II – proceder a todos os atos de jurisdição graciosa que lhe forem requeridos, contra possíveis lesões de direito;
XIII – praticar quaisquer outros atos que lhe forem atribuídos por lei ou decorram de sua competência.
Art. 363. A disciplina judiciária, com a finalidade de zelar pela exata observância das leis e regulamentos que interessam à administração da Justiça, será exercida:
V – pelos Juízes.
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Lei Orgânica do Ministério Público de Santa Catarina
Art. 90. São funções institucionais do Ministério Público, nos termos da legislação aplicável:
a) a proteção dos direitos constitucionais;
c) requisitar à autoridade competente a adoção de providências para sanar a omissão ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder.
Todavia, qual a resposta processual possível ao pós-ato de instrução destes autos, diante das graves violações aos Direitos Humanos da mulher?
Afigura-se, prima facie, como de viva violação, pelo magistrado, do Código de Processo Penal – art. 201, especialmente seu § 6º:
6º O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação.
Já o Pacto de São José da Costa Rica vaticina:
Artigo 11 – Proteção da honra e da dignidade
1 – Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
2 – Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
3 – Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
Na mesma trilha, a Constituição Federal brasileira:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 3 – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art 5: Inciso III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
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No caso epigrafado, por se tratar de mulher, em processo judicial, defronte às instituições públicas e da clareza das ofensas proferidas, há que se suscitar a existência de tratado internacional especial de proteção aos seus direitos, destacando os espaços públicos: CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ – 1994”:
Artigo 1 – para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.
Artigo 2 – Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica.
1. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Artigo 3 – Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado.
Artigo 4 – Toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos. Estes direitos compreendem, entre outros:
b – direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
e – direito a que se respeite a dignidade inerente a sua pessoa e que se proteja sua família.
Artigo 6 – O direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui, entre outros:
1. o direito da mulher de ser livre de toda forma de discriminação, e
2. o direito da mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseadas em conceitos de inferioridade ou subordinação.
Do ponto de vista prático, e de resultado jurídico possível, diante da vasta violação aos direitos da pessoa humana, parte da relação processual, sem que tenha havido a intervenção judicial ou ministerial, mesmo com o dever legal, resta indene de dúvida ser o caso de nulidade absoluta da audiência e consequente sentença, via apelação por meio de assistente da acusação.
Ainda, sob o ponto de vista pedagógico, social, como remarcação civilizatória e humanitária, fazer todos aqueles atores do sistema de justiça acomodarem-se em suas cadeiras, novamente, defronte àquela mesma mulher será um ato de compromisso de não sucumbência do Estado Democrático de Direito e acordo da República com a dignidade da pessoa humana, selado em 1988.
Curiosamente pode ser um marco não só para a publicidade da forma como vítimas/ofendidos são tratados por diversas instâncias de poder (vitimização secundária), mas também, e sobretudo, como na seara penal os réus, os condenados e seus familiares sofrem esta mesma espoliação secular, naturalizada e enraizada, desde as instâncias policiais, passando pelos julgamentos, até o encarceramento.
Interessante notar que não enxergar a universalidade da ofensa aos Direitos Humanos no caso epigrafado só faz insistir na cega e ultrajante fórmula dos direitos humanos para humanos direitos; de que se pode eventualmente aceitar que agressões ilícitas à vítima fazem parte do pacote do exercício da ampla defesa (um Direito Humano igualmente universal, pois não). Mas, falta lembrar que a força destes direitos está no exercício diário de coesão do sistema de defesa do cidadão contra o Estado Penal acusador (verticalidade) ou contra o Poder Judiciário que se reveste de persecutório (em muitos casos). Não entre os seres humanos ali sempre reificados, réus ou vítimas, neste Estado Penal brasileiro.
Saulo Dutra de Oliveira é defensor Público de SP. Coordenador de Execuções penais no Vale do Paraíba. Pós-Graduado em Ciência Criminais
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