Sejam bem-vindos/as, leitoras/as do Justificando à mais nova série da coluna Liberdades: Psicologia do Testemunho. Temos estudado o tema, agora, há quase uma década, e percebemos a crescente necessidade de articular espaços de debate com quem lida, diariamente, com a prova dependente da memória.
Por isso, esse espaço servirá para indicações de leituras, contextualização dos debates no exterior e em nosso país, bem como inaugurar canal permanente de comunicação com vocês.
Neste primeiro texto, as falsas memórias são nosso objeto de atenção. Normalmente, mesmo os atores jurídicos mais experientes são surpreendidos com as cautelas científicas necessárias para a realização de entrevistas forenses.
Nos processos que tentam a (re)construção do fato criminoso pretérito, podem existir artimanhas do cérebro, informações armazenadas como verdadeiras, ou induções dos entrevistadores, de outras pessoas e/ou da mídia que, no entanto, não condizem com a realidade. Estas são as chamadas falsas memórias, processo que pode ser agravado, quando da utilização de técnicas por repetição de perguntas, como as empregadas de forma notória no âmbito criminal.
Falsas memórias consistem em recordações de situações que, na verdade, nunca ocorreram ou aconteceram de forma diversa de como lembrado pela vítima/testemunho. A interpretação errada de um acontecimento também pode desencadear esse processo.
Embora não apresentem uma experiência direta, as falsas memórias representam a verdade como os indivíduos as lembram[1]. Podem surgir de duas formas: espontaneamente ou através de uma sugestão externa.
Além disso, a qualidade da prova pode estar comprometida também quando da decorrência de lapso temporal exacerbado entre a coleta dos depoimentos policiais e os testemunhos judiciais, favorecendo a produção de memórias falsificadas.
A influência do tempo já foi reconhecida judicialmente como prejudicial à qualidade da prova, como vemos: “Parte da prova oral colhida em juízo, cinco anos depois, certamente foi prejudicada pela ação do tempo, que opera o esquecimento dos fatos e até a inclusão de falsas memórias”[2].
Enxergar, através dos olhos da testemunha, é um dos desafios comuns ao juiz durante o processo penal. Apesar desta dificuldade e de todas as possíveis “impurezas”, advindas deste tipo de prova, não é possível prescindir de sua existência[3]. Isto porque existem crimes, especialmente os materiais, que dificilmente poderão ser analisados de outra forma que não pela testemunha. O homicídio é um claro exemplo desta situação.
Mas, como o juiz poderia utilizar-se desta experiência da testemunha? A resposta é bastante complexa.
Ao presenciar o fato, certamente, a testemunha o interpreta, de acordo com sua própria vivência que, na maior parte das vezes, não é a mesma do juiz. Alexandre Morais da Rosa nos traz uma possibilidade interessante: “A melhor maneira de julgarmos um processo crime é imaginar o enredo sem o ato violento ou criminalizado”[4]. É necessário, portanto, um certo afastamento para consegui-lo[5].
Aqui deixamos bastante evidente que não se trata apenas de avaliarmos as atuações do órgão acusatório e da magistratura, mas, necessariamente, de todos eles que terão participação ativa na (re)construção do fato passado. Portanto, processos que gerem falsas memórias não dependerão apenas de quem tem a função de acusar e a quem julga, mas também, daqueles defensores que, em contraditório, lançarão mão das melhores estratégias para evitar distorções.
O sistema de oitiva de testemunhas, adotado na legislação brasileira, a partir da reforma processual de 2008, é semelhante ao cross examination (ou exame direto e cruzado[6]) norte-americano, já que, em ambos, a acusação e a defesa realizam os seus questionamentos diretamente às testemunhas. Neste formato, as partes ficam sujeitas ao contrainterrogatório de seu oponente. Existe, porém, importante diferença: o processo penal brasileiro não limitou a atuação do juiz, no sentido de somente presidir o ato, mas também permitiu a ele a faculdade de complementar a inquirição acerca dos pontos não esclarecidos[7].
O artigo 212 do CPP traz algumas limitações às perguntas realizadas. Estas não poderão induzir resposta, nem ter relação com a causa e importar em repetição, sendo o magistrado responsável por fiscalizar a inquirição[8]. Neste ponto, constatamos importante dificuldade de nosso regramento legal: inexistem definições do que seriam perguntas que induzem à resposta.
Estas são questões cruciais a serem enfrentadas em nossos próximos textos, incluindo a análise das estratégias atualmente utilizadas nas legislações comparadas.
Por enquanto, precisamos saber que falsas memórias existem, possuem repercussão crucial (inclusive judicial, como visto) e são de difícil identificação, pois quem relata crê verdadeiramente em sua versão.
Desta forma, será necessária profunda análise acerca dos métodos/técnicas recomendados na melhor literatura para tentar prevenir a formação de falsas memórias. Apenas desta forma, talvez poderemos efetivamente impedir erros judiciais traduzidos em insuportáveis privações de liberdade.
Gustavo Noronha de Ávila é Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em Direito do Unicesumar, onde ministra a disciplina “Psicologia do Testemunho e Efetivação de Direitos Humanos”. Professor de Direito Penal e Criminologia das Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Unicesumar. Também é docente nos cursos de especialização em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Maringá, Unicesumar, Instituto Paranaense de Ensino e do Centro Universitário Ritter dos Reis (Porto Alegre/RS). Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque” (2013), e co-autor, com Vera M. Guilherme, de “Abolicionismos Penais” (2015), ambas publicadas pela Editora Lumen Juris (RJ).