Primeiro artigo da Coluna assinada por membra da Rede Feminista de Juristas.
Delação premiada e depoimento da vítima são a solução para o estupro coletivo
O caso do estupro coletivo da menor no Rio de Janeiro continua nos desafiando. No último domingo, 5.6.2016, foi descoberta uma gravação, no celular do suspeito detido, Raí de Souza, que elimina qualquer possibilidade de questionamento do consentimento da vítima. A grande dificuldade é apontar a autoria, quantos e quem foram os envolvidos.
Existem formas de resolver a dificuldade em apurar a materialidade e autoria de um crime de estupro, sem ameaçarmos (mais ainda) o atual estágio democrático que vivemos.
Aumento da pena é ilusão
É ilusão pensar que, quanto mais aumentamos a pena, mais fazemos justiça. A imagem da balança, historicamente associada ao ato de fazer justiça, é o conceito que norteia quem defende este punitivismo, como se um estupro pudesse ser reparado ou equilibrado com outra coisa extremamente pesada no outro prato, uma pena igualmente horrível.
Um crime gera consequências que vão além do físico e que extrapolam a mecânica da matéria, de peso e contrapeso. Para melhor compreendê-lo, precisamos um raciocínio mais complexo que esse, que não passa de uma metáfora, imagética. Raciocínio que não é muito diferente daquele que promove linchamentos públicos, visando um castigo tão feio quanto é feio o criminoso aos seus olhos.
Diversos são os estudos que comprovam que não existe relação entre aumento de pena e redução da criminalidade[1], mas não precisamos mais do que observar a nossa realidade para ver que, não obstante aprovarmos mais de 100 leis penais recrudescendo penalidades desde a promulgação do Código Penal, em 1940, a criminalidade não reduziu.
Beira à fantasia supor que os criminosos fazem um cálculo racional acerca da quantidade de anos na cadeia antes de cometer um crime. Aumentar a pena, aprovar pena de morte ou castração química etc. (o pensamento “de balança”), além de não serem um bom paradigma reparatório, não darão conta de evitar que outros crimes como o em análise ocorram.
Superando a dificuldade de prova
Antes de entrarmos na questão da autoria, existe um problema mais estrutural que impede apuração dos crimes contra a liberdade sexual: ausência de testemunhas. A maior parte dos estupros ocorre em casa, na clandestinidade, a quatro paredes, quando a vítima está sozinha.
Soma-se à ausência de testemunhas o fato de que poucas mulheres conseguem procurar ajuda no momento seguinte ao estupro, seja porque o estuprador continua com algum poder sobre a vítima (é o pai, o tio, o irmão), seja por estarem psicologicamente muito abaladas.
Isso faz com que, ao finalmente recobrarem condições para a denúncia, o que pode levar dias, o exame de corpo de delito não encontre lesões e material genético do acusado, as provas materiais do crime.[2]
Uma vez reunidas forças para ir à delegacia denunciar, a batalha só dificulta. Delegados e policiais costumam desacreditar as vítimas, estimulados pela cultura do estupro, que prega que, no fundo, nós mulheres queremos ou merecemos isso. [3]
Para enfrentar a dificuldade em produzir provas e cultura de estupro existem dois remédios.
Primeiro, é preciso conscientizar as pessoas, principalmente delegados e policiais, também as próprias mulheres vítimas, da crueldade, seriedade e dificuldades processuais inerentes ao estupro. Precisamos urgentemente promover campanhas e debates públicos sobre o tema, em rede nacional, em horário nobre, combinadas com cursos de treinamento e informação sobre questões de gênero para agentes públicos de delegacias.
O segundo remédio é uma questão mais técnica jurídica: a palavra da vítima deve valer de fato mais que a de seu agressor ou estuprador. O STJ[4] já indicou seu entendimento de que o depoimento da vítima vale como prova, principalmente em crimes contra liberdade sexual, mas precisamos que esse entendimento seja obrigatório para todas as instâncias do judiciário e principalmente nas delegacias, onde a ausência desse entendimento forma boletins de ocorrência inúteis.
Considerar o depoimento da vítima como prova não ofende a presunção de inocência, pois poderá ser contraditada pelo acusado. O entendimento do STJ apenas corrige o desequilíbrio de forças que existe factualmente entre as partes de um crime de estupro.
No atual estado de coisas, é mais fácil ao acusado inocente provar sua inocência do que à vítima de estupro provar que foi vítima. Coisa parecida tem-se no conceito de hipossuficiência do trabalhador, na seara do direito do trabalho.
O estupro coletivo do Rio de Janeiro foi cometido na clandestinidade, num local abertamente reconhecido como “abatedouro”. Diferencia-se dos demais dada a infeliz ação de um dos suspeitos, que divulgou despudoradamente o vídeo, convertendo a todos nós em testemunhas. Os dois outros problemas apontados acima persistem.
Encontrando os criminosos com ajuda da delação premiada
O instituto da delação premiada ficou famoso com o caso da Lava-Jato e foi regulamentado pela lei n. 12.850 de 2013, mas existe expressamente em nosso ordenamento desde a Lei de crimes hediondos n. 9.807 de 1990, em seu artigo 18º, parágrafo único.[5] Trata-se basicamente de oferecer uma diminuição de pena a um dos suspeitos, caso este delate os outros comparsas da organização criminosa.
A organização criminosa em análise se demonstra nas declarações dos acusados e de testemunhas da comunidade de Praça Seca, que se referem ao local do crime como “abatedouro”, onde estupros ocorriam corriqueiramente. Praticaram o ato conjuntamente, revezando-se entre a conjunção carnal e a imobilização da vítima, o que o vídeo comprova. Assim, a delação premiada cabe no caso.[6]
A base da delação é achar que o suspeito vai racionalmente escolher dedurar em vez de se manter em silêncio. Apostar no comportamento racional de alguém sob investigação é mais garantido do que apostar na racionalidade de uma pessoa prestes a cometer um crime, como pensam defensores da pena de morte.
Se bem utilizada e desde que tratada como mera prova do crime em vez de fato consolidado, evitando-se que seja pauta oportunista e sensacionalista da mídia para manipular e inflamar a opinião pública, a delação pode resolver a um só tempo os outros dois problemas que o crime em análise enfrenta – quebra a proteção “solidária” ou que existe entre os possíveis suspeitos e apuraria a autoria dos que aparecem ou não nos vídeos.
Conclusão – por um direito penal não punitivista que dê conta dos problemas
O Direto deve ser sensível às particularidades que cada evento detém, com coragem para corrigir as distorções que as estruturas de poder, seja ele econômico ou simbólico, engendram. Tomar as rédeas da situação social que encontra diariamente e não deixar uma sociedade sem resposta ante as barbaridades que as choca é o único caminho para evitar que essa própria sociedade desenvolva mecanismos de “justiça” paralelos ao judiciário, como os linchamentos.[7]
Tanto a consideração do depoimento da vítima como prova quanto a delação premiada são instrumentos legítimos às mãos dos operadores do direito em nome da sociedade, que não ameaçam nosso estágio democrático, ao contrário do falacioso aumento da pena, que além de ser um raciocínio primitivo de justiça, dominado pelo paradigma imagético da balança, que trata coisas abstratas como matéria, não resolve os problemas postos.
Camila Spósito é advogada e mestranda em direito econômico pela USP, integrante da Rede Feminista de Juristas Defemde.