Advogados: uni-vos! Este é um texto duro; certamente um dos mais duros que já escrevi. Afinal de contas, servidores federais praticaram um crime não só em face dos advogados dos supostos terroristas, mas contra toda a classe. A última sexta-feira, portanto, entrou para a história como o dia em que uma portaria da Diretoria do Sistema Penitenciário Federal suspendeu a Constituição da República. É preciso ter consciência – ou vergonha – suficiente para reconhecer que a referida portaria, da forma está posta, responde a uma ideologia autoritária na medida em que (r)estabelece, ainda que de forma latente, a incomunicabilidade do preso.
É o que “sentiu na pele” um dos advogados dos supostos terroristas. Em suas palavras, “graças à nova portaria do Ministério da Justiça ["Portaria DISPF Nº 4 da Diretoria do Sistema Penitenciário Federal], publicada menos de um mês antes da operação da Polícia Federal que prendeu os 11 suspeitos, eles ficarão incomunicáveis e sem advogados por até 10 dias" [1]. Incontinenti, após a leitura deste relato, rememorei de Warat, porque, se ele dizia que “o pior tipo de genocídio é aquele que faz sentir aos excluídos culpados de estarem vivos” [2], eu costumo dizer que o pior tipo de genocídio (processual) é aquele que faz com que os advogados sintam vergonha de exercer a sua profissão [3].
Lendo a reportagem do site e o relato do colega advogado, senti vergonha, mas não aquela que funda um Estado Democrático de Direito, tal como ensina Jacinto Coutinho [4]. Pelo contrário. Senti a pior vergonha – a mais humilhante e radical – aquela que, segundo Calligaris, nos afasta da coletividade, sem retorno: “a vergonha de quem somos, não de algo que fizemos.” [5]
Deveras, o que tem acontecido ultimamente com a advocacia é a perda da dignidade que tem nos ameaçado com a perspectiva de uma morte mais cruel do que a morte do nosso corpo: uma morte simbólica [6], que tenta tornar vergonhosa a nossa profissão de advogado. Faço coro, portanto, às palavras do corajoso professor Pedro Serrano, que, em sua página, no Facebook, sobre este caso, assim publicou:
Um absurdo!! "Patriotic Act" tupiniquim!!! A cada dia uma grande afronta ao direito de defesa e ao exercício da advocacia E ninguém diz ou faz nada. Aos poucos vamos abandonando os valores democráticos, esvaziamos de significado os direitos fundamentais. A incivilidade autoritária toma conta das relações inter-pessoais e entre cidadãos e Estado. Ou passamos a criticar as abertas este tipo de desvio ou iremos, todos, nos arrepender amargamente [7].
Ora bem, como é possível que na atual quadra histórica – em pleno Estado Democrático de Direito – uma portaria [8] criada pela Diretoria do Sistema Penitenciário Federal possa revogar a Constituição da República? Ora essa, como pode a Constituição da República dispor no art. 136, § 3º, IV, que é vedada a incomunicabilidade do preso, e a diretoria do Sistema Penitenciário, por sua vez, com base na referida portaria, impeça que o advogado se comunique com o seu cliente, tal como fora relatado por ele?
A Portaria vai ao ponto absurdo de – expressamente – dispor que estão revogadas todas as disposições em sentido contrário, deixando claro, também, por mais paradoxal do que possa parecer, que “os casos omissos serão dirimidos pelo Diretor da Penitenciária Federal” (arts. 10 e 11). Agora fica fácil entender por que, após ter sido perguntado pelo policial se estava armado, Georg Lukács respondeu que sim, entregando-lhe, calmamente, uma caneta [9]. Na Democracia – guardemos bem isso – uma caneta mal utilizada torna-se uma arma, razão pela qual, metaforicamente falando, o que a portaria faz não é outra coisa senão “armar” o autoritarismo para que este manche (com sua tinta) o brilho do texto constitucional.
Afinal, se é verdade que as disposições em sentido contrário estão revogadas, tal como afirma o art. 11 da portaria, então Estatuto da OAB, no art. 7º, III, que dispõe ser direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração…” foi revogado pelo § 3º, do art. 2º da portaria, pois, segundo a direção da Penitenciária Federal, “para atendimento ao preso, o advogado deverá estar constituído por procuração que contenha a indicação do processo de atuação”. Ou seja: uma portaria revogou expressamente a Constituição, o Estatuto da OAB e, se não bastasse isso, ainda dispôs que qualquer omissão dever ser “dirimida” pelo Diretor da Penitenciária Federal (os novos garantidores de direitos fundamentais ou “fiscais da lei”). Agora vai…
Daí a pergunta: de que Democracia, de que humanismo podemos falar quando observamos a República desmoronando diante de nós? O que me entristece, sobremaneira, é que o pior genocídio processual, tal como expus linhas acima, multiplica-se cotidianamente entre nós, mas continua sendo silenciado pelas formas da razão jurídica, e as banalizações dos meios de comunicação o semiocídio [10].
E esse processo se materializa, infelizmente, “graças aos meios de comunicação de massa, que são os principais gestores do mito da catástrofe” [11]. O problema aqui levantado parece simples – e é. Afinal, como bem observou Jacinto Coutinho, justamente “pela massificação da desgraça (principalmente), vendida como mecanismo encobridor (ou destruidor) da sensibilidade, que se tem conseguido deixar o ser humano sem a opção de não ser brutalizado” [12]. O resultado, como não poderia deixar de ser, é um punitivismo desmedido [13], baseado muito mais num moralismo do que na própria Constituição, razão pela qual a consequência tem sido uma grandiloquência das palavras e uma fraqueza dos atos.
Bem, se tudo isso é verdade que a portaria fará a Constituição sucumbir, então a Democracia deu lugar àquilo que chamo de “cursocracia”, isto é: os alunos dos cursos preparatórios chegaram ao poder. Quando isso acontece, pouco – ou quase nada – resta a se fazer. Mas ainda vale a tentativa de, como diz Geraldo Prado, romper o cristal [14].
Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).