Consumado o golpe na democracia com a ascensão de Temer, era de se esperar a derrota nas urnas e perseguição, agora em uma nova modalidade jurídico-religiosa, de quadros políticos e cidadãos avessos ao projeto de retrocesso econômico e social, ironicamente batizado de “Ponte para o futuro”. A surpresa e maior risco, contudo, continua sendo a vertente do projeto que quer ir além da política institucional, ameaçando não só os políticos atuais, mas a possibilidade de formação de sujeitos políticos entre as próximas gerações, através de castração cognitiva aplicada em duas frentes: a Escola sem Partido e Medida Provisória (MP) da Reforma do ensino médio. [1]
Ambos são projetos que visam excluir o diálogo das salas de aula. A falácia utilizada para justificar tal intento é a de que existiria uma doutrinação marxista sendo aplicada por professores mal-intencionados. Como se, ao dizer claramente o que se pensam e no que se acreditam, tais professores agissem contrariamente ao livre debate.
Ser livre, na Escola sem partido e sem ciências humanas, é não dizer o que se pensa, é ter o direito de não ouvir opinião nenhuma. Porque, para os avessos à doutrinação, liberdade não é estimular todos os pontos de vista, mas silenciar aqueles com os quais não concordam.
Se em vez de excluir Filosofia, Sociologia e Educação física do currículo, Temer recuou e tornou-as optativas, não é notícia melhor – trata-se da velha tática de apresentar como opção uma regra que será imposta indiretamente.
O jovem da escola pública terá de escolher entre uma matéria e outra em meio à pressão para sobreviver financeiramente, o que o levará a privilegiar as habilidades técnicas e especializadas, instrumentais, mais valorizadas pelo mercado. Comer ainda é mais importante do que estudar. Com sua compreensão de mundo moldada e especializada, rumamos a um mundo mais sectário e menos inclusivo de fato, mais fácil de dominar.
A especialização está para a educação como a sectarização está para a política: ambas trancam o sujeito no círculo de coerência binária do qual é muito difícil sair, porque construído ao longo de anos de adestramento educacional. A coerência discursiva, estática, tem que ser mantida a qualquer custo, mesmo frente a um mundo eivado de contradições. O aluno só terá as ferramentas para codificar uma pequena parte da realidade e transformá-la em saber. Não pense – trabalhe. Não discuta sua opinião política – vote.
Esse padrão mental de já existe e se retroalimenta no próprio debate dessas reformas em foco, tanto entre sujeitos de direita quanto de esquerda [2]. As eleições municipais provaram que a criminalização da política e do debate está sendo encampada por grande parte de população que votou branco e nulo, ou pior: votou em candidatos de direita que abertamente se dizem apolíticos.
A sectarização da esquerda, embora não rejeite o rótulo da política, responde à tentativa de eliminação do sujeito político do discurso da direita exacerbando os sujeitos políticos individuais. Nivela-se “por baixo”, como dizemos. Assim se explica também a total perversão de um conceito como “lugar de fala” [3], cuja contribuição inegável ao pensamento emancipatório está ameaçada por esses sectarismos.
O que nos aparece como discurso é uma disputa pelo tempo: enquanto os sectários da direita insistem em manter-se no tempo do status quo, ou até mesmo regredir, os sectários da esquerda decretam o futuro como certo aqui e agora, admitindo-o de modo fatalista, esquecendo-se da relação dialética que o antecede e que reclama construção, harmonia, paciência e inclusão- inclusive dos opressores. A sectarização, como disse Paulo Freire:“… em ambos os casos, é reacionária, porque um e outro, apropriando-se do tempo de cujo saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo”.
A tendência de criminalização da política que se revelou em total potência no golpe, se confirma com as eleições municipais e continua através das reformas educacionais, com as quais se perpetuará o ambiente tóxico e anaeróbio para comunicação, que favorece discursos de ódio e corrói o que resta da democracia burguesa.
Se algum antídoto nos resta, é lembrar que o inimigo não é o outro, mas sim essa fumaça verde de ódio que nos rodeia. Nós, que buscamos a emancipação e o futuro, precisamos relembrar o já citado Paulo Freire, que nos ensinou que a tarefa do oprimido não é apenas se libertar, mas é libertar também o opressor.
Camila Sposito é advogada e mestranda em direito econômico pela USP, integrante da Rede Feminista de Juristas DeFEMde.