Arte: André Zanardo
A religiosidade monoteísta, especialmente, o catolicismo apostólico romano, exerceu, desde o período pré-colonial, importante papel na formatação da sociedade brasileira, ocupando espaço privilegiado na construção de sentido. Contudo, com a modernidade, e a consequente laicização do Estado, a sua originária função entrou em declínio, perdendo a relevância e solapando a grande influência que até então era exercida como epistemologia única no modo de experienciar o conhecimento. Esse fenômeno passou a ser chamado de secularização, que é quando o mýthos cede lugar ao lógos[1].
Mýthos é aquilo que escapa ao lógos, e que pertence, portanto, ao campo simbólico da transcendência. Já o lógos diz respeito à verdade, relacionando-se à ciência. No ocidente, o predomínio do lógos como sistema de formação de sentido passou a acontecer, em especial, a partir do iluminismo burguês, quando a ciência foi aceita como o modo de conhecer o mundo mais adequado aos novos tempos, com critérios empíricos de verificação baseados na falseabilidade e na provisoriedade (Karl Popper), ao contrário do mýthos, que se baseava na revelação de verdade soberana e inquestionável. Foi também a diferenciação entre sociedade e ambiente que marcou a sociedade moderna, tornando possível e necessária a redução da complexidade do ambiente em uma complexidade organizada, com a criação de sistemas sociais parciais autopoiéticos, fechados operacionalmente e abertos cognitivamente, não mais sustentados na transcendentalidade e no metafísico.
A despeito da secularização, no Brasil, de modo antagônico, parece ocorrer o fenômeno da dessecularização, que pode ser observada, em especial, no âmbito de discurso das instituições públicas brasileiras, mais especificamente, e com mais notoriedade, das organizações políticas, em que a religião ocupa um espaço privilegiado na determinação de políticas públicas. Ao invés de perder campo na instauração de sentidos e conservação da coesão social, a religiosidade ganha novo espaço de atuação.
Apesar de, desde a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891, o Brasil ter assumido o compromisso da separação entre religião e estado, o Congresso Nacional tem por composição numerosa bancada religiosa, que, assumidamente, atua pela mistura discursiva entre política e religião, com apresentação de projetos de lei de cunho proselitista. É o fundamentalismo nosso de cada dia: a tendência de recrudescência na política de práticas fundamentalistas religiosas.
As temáticas são extensas e sérias, englobando questões como a proibição do aborto, a resistência à criminalização da homofobia (PL 122/2006), a “Cura Gay” (PL 4.931/2016), a dificultação do procedimento abortivo em caso de violência sexual (PL 5.069/2013), a fixação da heteronormatividade na conceituação da família (PL 6.583/2013), a imunidade penal dos líderes religiosos (PL 6.314/2005), a eliminação de diretrizes educacionais que orientem o respeito às diferenças sexuais, sob o boicote denominado “ideologia de gênero”, dentre outras. No STF, em 2017, através do julgamento da ADI 4439/DF, foi notória a permissão do ensino religioso confessional nas escolas, oferecendo o aval jurídico para a oferta, na rede pública de ensino, de religiões específicas, reconferindo espaço privilegiado ao catolicismo apostólico romano.
Para Luhmann[2], a secularização é a relevância sócio-estrutural da privatização da decisão religiosa, quando os demais sistemas autopoiéticos da sociedade devem assegurar suas autonomias contra o controle da religião. No Brasil, ao invés da privatização da experiência religiosa, assistimos a sua republicização, através da dominação política discursiva de temas fundamentalistas, em verdadeira ressacralização das organizações.
Não bastasse a reconsagração da religião em suas crenças e práticas, cuja relação com a política remonta ao medievo, o aumento de seu campo coloca em debate a atuação das organizações políticas e jurídicas brasileiras, que não possuem autonomia suficiente para manterem a sensibilidade às pressões da rede dos discursos religiosos e, ao mesmo tempo, conservarem sua própria autopoiese, com fechamento e autonomia. Essa corrupção pode vir a bloquear a autonomia autopoiética sistêmica, ou ainda, restringi-la a segmentos parciais de suas possibilidades operativas, tratando-se de questão estrutural que vem a afetar as expectativas sociais que são produzidas perante estes sistemas.
O código binário de comunicação do sistema religioso, imanência/transcendência, aparece com muita força em pautas de governo, havendo a produção de ressonância da semântica religiosa na política. Esta, ao invés de proteger seu campo, apropria-se do código de sentido daquela.
Não que essa irritação não fosse esperada pela religião, já que ela costuma atuar de modo reativo diante da autonomia dos sistemas parciais. Sua função é essa: aglutinar as esferas sistêmicas. No entanto, especialmente o sistema político parece querer abraçar o totalitário ponto de partida unívoco proposto pela religiosidade, gerando resultados desastrosos, através do fomento de discursos fundamentalistas, antidemocráticos, antipluralistas, intolerantes à ótica do outro.
A religião entra mais uma vez em pauta. Aliás, a grande questão aqui é justamente sobre pautas, que são corrompidas nessa valsa intrépida. São discussões importantes que deveriam se restringir ao poder político, como a questão do aborto, da união homoafetiva, células-tronco, ensino religioso nas escolas, dentre outros temas, que ganham positivação com o espectro da religião.
Importante destacar que, para Luhmann[3], a política perde o seu lugar como centro da sociedade na modernidade, passando a atuar paralelamente e de modo conjunto com outros sistemas sociais. A este sistema cabe a tomada de decisões coletivas, através da dicotomia governo/oposição, e com atuação na condensação de opiniões públicas. Se a dicotomia que entra em tela é substituída, com a corrupção deste código de poder por outros, seja este financeiro ou religioso, a legitimidade se perde, tornando a democracia inefetiva.
Nesse embate epistêmico entre ciência e religião e a consequente sensibilização e reação desta última nas arenas públicas, corrompe-se o código sistêmico político, minando a democracia. A religiosidade deve estar cingida ao recinto privado da consciência, posto que a crença é fragmentada. Afastá-la do âmbito de atuação das organizações políticas e jurídicas do Estado é necessário não somente para preservar a laicidade estatal e, desta forma, a democracia, mas também para permitir a liberdade religiosa e a própria asseguração da crença, sob o risco de retornarmos ao estado pré-moderno da sociedade.
A democracia pressupõe o relativismo discursivo, em contrapartida ao universalismo religioso. Não cabe a interdição da religião como elemento performativo da sociedade, sob pena de negar um de seus principais alicerces: a abertura procedimental aos mais variados argumentos e a aceitação da diferença de discursos.
O Estado laico, desta maneira, pressupõe, primeiramente, a laicização da sociedade que o abriga. Nesse ínterim, enquanto a laicização não acontece, devemos cuidar de eliminar todas as formas de poder apolítico e, ainda, promover o controle de decisões das organizações brasileiras, a fim de mantê-las sensíveis às redes múltiplas discursivas que na atualidade se constroem, mas igualmente fortes para conservarem suas autonomias.
Ana Paula Lemes de Souza é advogada, escritora, roteirista e pesquisadora. Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), Pós-graduada em Filosofia do Direito pela Faculdade de Educação Regional Serrana (FUNPAC), Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha (Fadiva). Membro integrante do Grupo de Pesquisa Margens do Direito.
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