Imagem: EBC
Engana-se quem pensa que os militares – em aliança com parte da sociedade civil à época, sob influência do imperialismo estadunidense, ao derrubarem João Goulart, em abril de 1964 – tinham um projeto definido e estruturado para o Brasil.
Tudo leva a crer que não. A ideia inicial, nas palavras dos próprios, era clara: eliminar a ameaça comunista e por fim a corrupção. Ou, em outras palavras, derrubar um governo sensível com os anseios dos trabalhadores que, apesar das suas limitações, possuía relativo apoio das camadas populares.
A ditadura civil-militar brasileira foi sendo pensada e estruturada a partir do golpe. A reforma universitária de 1968, por exemplo, demonstrou tanto a preocupação dos militares com o meio acadêmica[1], quanto, também, o fato da mesma ter sido pensada a partir da posse do marechal Castelo Branco – primeiro presidente militar deste período.
Se por um lado os militares não pensaram, até a deflagração do golpe, como se daria estruturalmente esta ditadura, muito menos a sua duração, a abertura política demonstrou, por outro, que a transição brasileira foi estrategicamente construída.
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As Forças Armadas buscaram, para além da Lei de Anistia, que na prática representou uma auto-anistia aos militares, inviabilizar qualquer possibilidade de questionamento em relação às atrocidades cometidas pelo Estado repressor e seus agentes.
Nesse sentido, os registros informacionais produzidos à época – compreendendo que a ditadura produziu uma grande massa documental, sobretudo no tocante aos organismos de inteligência – tiveram sua abertura, quando não inviabilizada, dificultada.
É bem verdade que nos últimos anos muitos acervos, possivelmente a menor parte produzida durante a ditadura, foram abertos à sociedade. Porém a dificuldade que os órgãos públicos no Brasil têm no sentido de encaminhar seus arquivos de valor histórico às instituições arquivísticas, ou seja, aos Arquivos Nacional, Estaduais e Municipais, vem prejudicando, em alguma medida, a abertura plena desses registros.
Outro elemento reside na má vontade das Forças Armadas – vide o retorno que elas deram as solicitações da Comissão Nacional da Verdade – em tornar público seus arquivos da ditadura. Há quem diga que isso é fruto de um pacto que os militares fizeram com a sociedade civil no sentido de permitir a abertura política.
Mas, independente disso, os militares, já durante os 21 anos de ditadura, tiveram uma grande preocupação com os arquivos deste período. Até porque era preciso, para a manutenção da política de repressão, sobretudo em relação aos que questionavam a lógica militar, registrar o máximo de informações possíveis. E assim o fizeram.
Em muitos desses acervos, em especial os mais sensíveis e comprometedores, os militares buscaram – quando não destruí-los ou colocá-los sob a responsabilidade dos oficiais da reserva, organizá-los de uma forma diferenciada – com a finalidade, ao que tudo indica, de dificultar o acesso a essas informações.
No tocante os arquivos da inteligência dos organismos estratégicos da ditadura, em especial os vinculados diretamente as Forças Armadas, os militares optaram por selecionar o que seria ou não aberto à sociedade, bem como classificar muitos desses registros como ultra-secretos, inviabilizando, por um longo período, a sua abertura.
Era preciso, em outras palavras, arquivar e apagar as memórias da ditadura. Nesse sentido, os documentos de arquivo, enquanto fonte primária para o resgate dessas memórias, nos ajudam a compreender fatos pouco estudados pela historiografia brasileira – a exemplo das contradições dos governos militares, sobretudo do ponto de vista das disputas no interior das Forças Armadas.
Da dependência à intransigência: as Comissões da Verdade e os arquivos da ditadura
Houve relativa divergência dentro das Forças Armadas, apesar dos poucos registros disponíveis, em relação ao golpe e a condução da ditadura neste período. Muitos militares, em especial os marinheiros de baixa patente, rebelaram-se contra a ditadura, sendo reprimidos, quando não expulsos da instituição.
Nossas memórias sobre a ditadura, nessa perspectiva, apesar das limitações, vêm sendo ressignificadas e potencializadas a partir do aprofundamento das investigações nos registros informacionais produzidos à época.
Não que a pesquisa documental seja a única e mais confiável fonte de informação para a construção ou reconstrução de realidades passadas – até porque muito do que acontece em uma sociedade, sobretudo em períodos de cerceamento das liberdades individuais e violações aos direitos humanos, estrategicamente, não é registrado – mas, na prática, acaba sendo uma importante ferramenta para nos aproximarmos da verdade histórica.
A ditadura civil-militar brasileira continua, quase quarenta anos após o seu término, mesmo reconhecendo os avanços nas últimas décadas, arquivada. Nenhum governo pós ditadura ousou romper com esta lógica e exigir das Forças Armadas, não apenas solicitar, a abertura completa dos referidos arquivos.
O Brasil não aprendeu com seus erros, muito menos prestou contas com seu passado. Reflexo disso é o fato de que estamos na eminência – se o jogo democrático for de fato respeitado – de sermos governados, a partir de 2019, mais uma vez, por um militar.
Leandro Coutinho é Mestrando em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em Gestão Estratégica em Políticas Públicas pela Universidade Estadual de Campinas e graduado em Arquivologia pela UFBA. Integrou a Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da UFBA.
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