A Operação Lava-Jato descobriu e desestruturou, institucionalmente, diversas organizações criminosas que se lastravam em alicerces corporativos e políticos, fato este que é considerado, por grande parcela da população, um ato heroico.
Entretanto, a mesma Operação instaurou uma estrutura narrativa demasiadamente maniqueísta, isto é, pretendeu isolar as pessoas etiquetadas como “corruptas” de um sedizente ambiente social carregado por (busca de) ares de integridade a partir de uma profilaxia moral. Flertou com a separação do Bem e do Mal. Travou uma verdadeira cruzada moral[1] utilizando-se de entrevistas em Talk Show, infindáveis coletivas de imprensa e um espaço privilegiado em diversos cultos religiosos para disseminar a luta contra a corrupção (incluindo jejum e oração). A Força Tarefa (FT) perpassou por esse lócus comunicativo para executar uma espécie de rent-seeking no afã de obter “capital social” que sustentasse a (i)legitimidade de atos promovidos pela Lava-Jato.
Para tanto, a FT empregou uma ferramenta narrativa de manobra para congregar, por meio dos referidos canais de comunicação, o capital de apoio, assim, confeccionando uma engenharia social que, a partir da construção de um pânico moral[2], visou cooptar o (in)consciente coletivo, convocando-o a participar e (con)validar a cruzada contra a corrupção. Para alçar êxito nesta missão, a FT colocou no eixo de seu discurso a necessidade de apoio incondicional da sociedade para a existência e perpetuação da caçada aos “corruptos”[3]. Cabendo ao organismo social dizer “amém” a cada investida.
Aqui entra o objetivo deste breve texto. Permita-me mostrar-lhe uma fotografia colorida, a qual vai além de uma mera foto bicolor que desenha o mundo, apenas, em heróis e vilões.
Inicialmente, é inexorável que a Lava-Jato causou uma reviravolta na sociedade brasileira, chegando a influir, diretamente, em discussões políticas, corridas eleitorais e, igualmente, promoveu estrondosas tensões no famigerado WhatsApp do grupo da família.
De mais a mais, a Operação popularizou aquilo que a comunidade jurídica chama de decisionismo judicial[4] como um elemento jurídico para dar fundamento a possibilidade de combate a corrupção, às vezes, ao arrepio da Lei.
Desde a deflagração da primeira fase da Operação, a forma como o Ministério Público Federal (MPF) manejou o discurso de combate a corrupção apenas ampliou o trauma sócio psíquico da corrupção[5]. Logo, aquela raiva com a macrocriminalidade de colarinho branco que ali tinha se instaurado se converteu, no imaginário popular, quase como uma catarse, provocando, no inconsciente coletivo, um jogo entre o prazer e a revolta. A cada agente político e/ou executivo preso o senso comum tinha seu gozo sádico. A prisão saciava a gula por punição. A raiva primitiva da coletividade era sublimada em um prazer entoado por palmas, panelaços e gritos animalescos (que, em certo grau, fizeram as vezes do gemido de prazer) ao ver o inimigo custodiado.
Ao deflagrar uma nova operação, o Jornal do dia fazia da sua manchete uma peça do teatro. Com direito a personagens, figurino (que incluía a moda da última estação do macacão de Bangu I e cabelo raspado) e, para dar um leve toque de voyeurismo, a divulgação massiva de diálogos travados em interceptações telefônicas (i)legais.
A verdade nua e crua é que algumas fases da Operação se tornaram um espetáculo cercado de violação de direitos fundamentais. Aqui entra, como um super trunfo, o decisionismo judicial. Sim… com ele qualquer um consegue dar um Knock-out em qualquer direito fundamental. Nenhum consegue ficar em pé. A única coisa que fica em pé é a vontade de poder do julgador.
Explico isso em uma breve metáfora que é conhecida por muitos… Imagine que certa vez a população brasileira viu uma floresta pegando fogo, e nesta mata habitavam vários porcos… quando o incêndio se encerrou, viram aquela carne assada… nunca tinham mergulhado na saborosa pururuca. Aquele gosto que nunca tinha antes escorregado pelos lábios, agora se fazia presente.
A partir daquele momento, os integrantes da sociedade decidiram que sempre queriam comer aquela carne bem assada e apetitosa. Contudo, ao invés de criarem mecanismos racionais para atrair e caçar os porcos, fizeram o que? Bingo! Sempre quando queriam comer o porco eles ateavam fogo na floresta inteira para ao final pegar alguns poucos porcos. E para piorar, os porcos mais velhos delatavam onde estavam os suínos com a melhor carne (com o Plea Bargain inaugurarão um verdadeiro Açougue).
Vê-se, metaforicamente, que enquanto os porcos seriam os envolvidas nesse pânico moral que virou o crime de corrupção, a floresta, por seu turno, é os direitos fundamentais. A função das árvores é protegê-los dos abusos do caçador. O senso comum não quer direitos fundamentais. Não quer proteção. Querem caçar todos que fujam dos parâmetros de um empreendedorismo moral hipócrita (afinal… dentro de cada caçador também habita, inconscientemente, aquilo que ou aquele quem ele caça). E nessa caça, a decisão judicial se comporta como um lança chamas, queimando as árvores de forma instantânea. Sem limites, basta o caçador apertar o gatilho. O maior problema será quando perderem o controle desse incêndio. Não haverá mais floresta para proteger ninguém (até o próprio caçador). O fogo consumirá o oxigênio da Democracia. O Autoritarismo sufocará a todos. Lutemos sempre para combater qualquer faísca de decisionismo.
P.S.: Certamente diversas pessoas terão dificuldade em aceitar o que eu redigi. Sem problemas. Porém, vou contar uma última história interessante: o pintor francês Jean-Léon Gérôme, confeccionou um elo entre a sua obra A Verdade saindo do poço e uma parábola do século XIX. A parábola conta-nos que, certa vez, a Verdade e a Mentira se conheceram em um dia ensolarado. A Mentira, por seu turno, disse à Verdade que o dia estava lindo. A Verdade, suspeitando da veracidade da afirmação, olha lentamente para os céus e, de fato, constata a beleza radiante do dia. A Verdade e a Mentira charlaram por horas a fio. Conversa esta que anestesiou a suspeita intermitente que pairava sobre a Verdade. Eis que as duas se depararam com um lago. De imediato, a Mentira convidou a Verdade para tomarem um banho.
A Verdade, ainda levemente desconfiada, desliza a ponta dos dedos de seu pé sobre a lamina da água. Vislumbra um frescor ímpar. Assim, ambas se desembalaram de suas roupas e mergulharam no lago. Subitamente, a Mentira sai da água, veste os trajes da Verdade e, de maneira furtiva, corre ao horizonte.
A Verdade, incontinenti com a situação, negou-se a utilizar aquela roupa da Mentira. Não se envergonhando de cada curva de seu corpo, a Verdade nua, doravante, caminha pelas linhas e palavras de diversos textos. Infelizmente, aos olhos de uma multidão, é mais agradável a mentira com vestes de verdade, em detrimento daquela verdade nua. A nudez assusta. As roupas morais retardam a consciência crítica.
Rafael Fernandes Caldeirão é graduado em Direito (PUCPR) e pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal Econômico (PUCPR).
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Referência Bibliográfica
BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar editora, 2008, p. 157-158.
FERRAREZE FILHO, P. Tratamento jurídico do trauma sócio-psíquico da corrupção no Brasil. In.: ConJur, 2018. Acesso em 05/12/2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-04/paulo-ferrareze-trauma-socio-psiquico-corrupcao-brasil>.
STRECK, L. L. Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p. 273-278.
THOMPSON, K. Moral Panic: Key Ideas. New York: Routledge, 2005, p. 8.
[1] BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar editora, 2008, p. 157-158.
[2] THOMPSON, K. Moral Panic: Key Ideas. New York: Routledge, 2005, p. 8.
[3] Vale uma nota de rodapé para pôr panos quentes na discussão, mormente, neste momento que temos inúmeros empreendedores morais (Becker) na sociedade (conhecido, popularmente, como cidadão-de-bem). A crítica ora esboçada é direcionada a essa blague discursiva que se tornou o combate à corrupção, a qual se assemelha a uma espécie de fantasia histérica de um heroísmo narcísico. Para consignar, atos de corrupção não se combatem repressiva e punitivamente, mas sim se previnem.
[4] STRECK, L. L. Dicionário de Hermenêutica: Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p. 273-278.
[5] FERRAREZE FILHO, P. Tratamento jurídico do trauma sócio-psíquico da corrupção no Brasil. In.: ConJur, 2018. Acesso em 05/12/2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-mar-04/paulo-ferrareze-trauma-socio-psiquico-corrupcao-brasil>.