Imagem: Ação da Escola Livre de Redução de Danos
Por Ingrid Assunção Farias
Saímos do primeiro Carnaval do país que contou com a presença de uma Casa/Quintal da Redução de Danos durante a festa. A Ação #FiqueSuaveNoCarnaval – promovida pela Escola Livre de Redução de Danos – contou com a parceria de 9 grupos profissionais e políticos, e mais de 40 agentes redutores de danos atuando na cidade de Olinda, Estado de Pernambuco.
A ação teve dois espaços físicos de descanso e estímulo à saúde, e a intervenção volante realizada pelas ruas da festa, com distribuição de 5 mil KITS de Redução de Danos. Protetor solar, caminha, piteiras, sedas, canudos, pirulito e água. Todos materiais que podem ser usados para reduzir danos, caso as pessoas escolham fazer uso de drogas. Nas ruas, as pessoas alcançadas pela ação demonstravam curiosidade e interesse em ouvir falar sobre uso de drogas a partir da prevenção e do cuidado, em vez de proibição e repressão. Pessoas impressionadas com a possibilidade de falar, de forma responsável, com a população da importância de tomar cuidados básicos para se manter seguro/a.
A casa e o quintal promovidos pela ação foram espaço importante para acolhimento de casos críticos de abuso do uso de substância na festa. Mais de 2 mil pessoas passaram pelos espaços, com destaque para 6 casos de abuso que foram acolhidos pelas nossas agentes redutores de danos. Todos relacionados ao excesso do uso de álcool, a substância mais negada como droga por todos os foliões da festa e a mais estimulada pelas grandes empresas patrocinadoras.
A legalização do álcool permite que exista um investimento milionário na indústria para estímulo ao consumo. Esse estímulo sempre foi realizado a partir da exploração de diversos corpos, em especial o corpo das mulheres. Quantas propagandas associam o acesso ao corpo da mulher ao acesso à bebida? Também é notado que não existe nenhuma preocupação dessa indústria em prevenir os danos causados pelo álcool à saúde de seus consumidores e clientes. O fato é que, nos últimos anos, são diversas bebidas inventadas pela indústria, contendo um teor alcoólico cada vez maior, e destinada em sua propaganda para o uso das mulheres. Bebidas coloridinhas, ices, e outros formatos que provocam efeitos muito mais rápidos e intensos. Não é à toa que o álcool deixa vulnerável mais mulheres, que são desde pequena no núcleo familiar proibidas com repressão quando acessam essas drogas.
É um projeto do sistema capitalista que vende produtos que ameaçam nossa saúde. E do sistema patriarcal que orquestra a vulnerabilidade do corpo da mulher, seja porque ela fica bêbada, seja porque a sociedade considera que ela perde o direito de falar sobre seu corpo quando está sob efeito de drogas. Os 6 casos de abuso de álcool acolhidos pela ação foram de mulheres. Precisamos denunciar, o tempo todo, que a proibição é um projeto também patriarcal de controle dos corpos.
”A redução de danos salva vidas”. Essa era a frase que sempre ouvia das mulheres que ajudei a acolher quando trabalhei no programa Atitude em Pernambuco. Foram diversas as vezes que pudemos, através do programa, fazer a intervenção pela saúde e assistência em defesa das pessoas negras e pobres que eram detidas pela polícia com pouca quantidade de maconha e crack. Foram algunas casos que conseguimos intervir e apontar como sendo necessidade de abordagem da saúde e da assistência, nao da segurança pública.
Esse tipo de postura da segurança pública pode construir os caminhos para o fim do racismo institucional perpetuado pela política de drogas, que só prende e mata gente negra e pobre nas periferias. Uma guerra direcionada a determinados corpos. Essas iniciativas que acumulam para o avanço de direito são fortemente atacadas pelos grupos que se beneficiam com a exploração da violência e pobreza gerada pela proibição das drogas. Várias iniciativas de redução de danos têm sido duramente perseguidas e atacadas por grupos fundamentalistas e fascistas que se usam do discurso de ódio e fake news para incentivar uma política de violações de direitos.
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A Ação Fique Suave, na quinta feira da semana pré, recebeu uma intimação da Polícia Civil para comparecer à delegacia da cidade de Olinda e depor sobre uma investigação acerca da legitimidade jurídica de nossa ação. Na cidade, os agentes de justiça e segurança confundiam a proposta de promover cuidado e prevenção com uma ação de estímulo e apologia ao uso de drogas. A RD é ainda a política pública regulamentada pelo Ministério da Saúde, por meio da Portaria 1028 de 01/07/2005. Trata-se de um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de álcool e outras drogas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas, focando na prevenção aos riscos e danos do uso de substâncias, e estimulando também a prevenção para outros comportamentos de risco, como a transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis, e a redução da violência e vulnerabilidades sociais. A RD é baseada na compreensão de que muitas pessoas seguem usando drogas apesar dos esforços empreendidos para prevenir o início ou o uso contínuo de drogas. A intimação resultou em uma conversa acompanhada de advogados e especialistas, que apresentaram de forma detalhada os interesses de nossa ação com o estímulo à prevenção e ao cuidado. Mesmo assim, fomos proibidos de realizar a testagem de substâncias prevista pela ação. Como argumentos, apresentamos estudos, pesquisas e leis que apontam a não proibição da prática. Foi necessário assinar um termo de compromisso para garantir a segurança da nossa ação de uma possível intervenção policial.
Essa reação da segurança pública não foi um caso isolado. A polícia teve uma postura bastante agressiva durante a festa em várias cidades do país. No Recife, os agentes fizeram uma barreira entre o palco e a plateia em um show do grupo Janete Saiu para Beber, no Bairro do Recife, quando foi tocada “Banditismo por uma Questão de Classe”, do artista Chico Science. Na ocasião, o vocalista teria sido ameaçado de prisão. No dia seguinte, ao tocar a mesma música no Polo da Várzea, a banda Devotos foi advertida de que poderia ter o show interrompido. Em São Paulo mais de 300 pessoas foram presas antes do carnaval numa mega ação policial. Só esse número pode encher um presídio. É necessário estar atenta ao recrudescimento das forças de segurança, que têm atacado, cada vez mais, ações culturais e manifestações populares garantidas constitucionalmente.
A redução de danos segue firme no projeto ético de cuidar das vidas, de estimular saúde e cuidado entre as pessoas. Prevenir é compartilhar informação, e informação não é apologia. É um direito humano! Ano que vem a Ação Fique Suave será realizada novamente, para alcançar ainda mais pessoas, e estimular instituições públicas e privadas em promover e incentivar essas iniciativas. Vida longa à Redução de Danos que salva – todos os dias – muitas vidas!
Ingrid Assunção Farias é colunista do portal justificando, coordenadora da Ação de Redução de Danos no Carnaval pela Escola Livre de Redução de Danos
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