Arte: Justificando
Por Gustavo Tank Bergström
Na última quinta-feira (07/05), boa parte da sociedade brasileira consternou-se ao assistir a entrevista da atual Secretária Especial de Cultura, Regina Duarte, concedida à CNN Brasil, em seu gabinete em Brasília. Ao ser indagada sobre sua presença no governo Bolsonaro que, em diversas oportunidades externou apoio ao período de ditadura militar (1964-1985) no país, Regina minimizou as inúmeras mortes ocorridas durante o período.
Frases como “Na humanidade, não para de morrer [gente]. Por que as pessoas ainda ficam ó [chocadas]? Não quero arrastar um cemitério de mortos nas costas”, constrangeram até mesmo o entrevistador, que tentou argumentar a despeito das censuras, torturas e até mesmo mortes ocorridas. No entanto, insistiu a secretária: “Se você falar da vida, do lado tem a morte. Sempre houve tortura, censura. Sou leve, estou viva. Estamos vivos, vamos ficar vivos? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões”.
As alegações são perversas, mas não surpreendem. Não é apenas Bolsonaro, Regina Duarte, ou o governo que compartilham deste pensamento. Grande parte dos brasileiros pouco conhecem sobre o golpe de 1964 e as trágicas décadas que vieram em seguida. Mesmo diante das recentes evidencias apresentadas pela CIA (Serviço de Inteligência dos Estados Unidos), que revelaram que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) autorizou a execução sumária de militantes opositores ao regime, há ainda no país uma manifesta resistência em reconhecer o próprio passado.
Por outro lado e longe daqui, no velho continente, comemorou-se nesta sexta-feira (08/05) os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. O conflito que terminou em Berlim, matou cerca de 60 milhões de pessoas em todo o mundo e configura-se como um dos mais nefastos períodos da história humana. Durante as celebrações no dia, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente do país, Frank-Walter, estiveram presentes no Portal de Brandemburgo para depositar flores e prestar homenagens às vítimas do genocídio. Uma questão, portanto, chama a atenção: a maneira como os alemães tratam o nazismo e sua história.
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Após o fim da segunda guerra, a Alemanha submeteu-se à um longo processo de reconciliação pública com seu passado, reconhecendo e enfrentando como nação a responsabilidade gerada pelo legado nazista. Levaria tempo, mudanças geracionais e eventos externos para tornar a Alemanha o que é hoje: uma democracia vibrante e notavelmente menos permissiva ao racismo, fascismo e extremismo do que o Brasil. A cultura e a política alemã foram reconstruídas para intercalarem-se integralmente com a história do país e, assim, regularmente referem-se ao período nazista.
Dessa maneira, o processo de descobrir e enfrentar o passado torna-se multifacetário e não fica restrito à apenas escolas ou museus. Os alemães não aprendem sobre o Holocausto somente de uma maneira. O processo está presente em obras de arte, na literatura, em filmes, na televisão, de diferentes formas e registros, repercutindo-se em toda a sociedade alemã.
O país igualmente promove diversas pausas para realizar eventos públicos de demonstração de arrependimento – e não sente vergonha por isto. A libertação de Auschwitz, além da celebração do fim da guerra, como visto nesta sexta-feira, são apenas alguns exemplos dos eventos públicos de arrependimento. Há ainda, na reunificada Berlim, o Memorial do Holocausto, o East Side Gallery e as famosas pedras de tropeço” – pequenas placas colocadas por toda a cidade para marcar onde judeus e outras vítimas viveram pela última vez.
Nesse sentido, o exemplo da “desnazificação” da Alemanha no pós-guerra pode oferecer um caminho a ser seguido pelo Brasil. A negação do próprio passado em nosso país traz tem trazido tantas consequências negativas que até mesmo eleitores do atual governo passaram a reconhecer a gravidade da situação. Agressão à jornalistas, manifestações pela implementação do Ato Institucional n. 5 – AI-5, encontros e homenagens públicas à torturadores, pedidos de intervenção militar, são reflexos do trágico quadro político-institucional que estamos inseridos.
A negligência da própria história, portanto, não é incidental, mas sim um atributo cristalizado em nossa sociedade, que impossibilita a mudança de perspectiva. Se recusar a ser honesto quanto ao seu significado garante que o país não enfrente completamente seu passado. E para construir o futuro é preciso que se entenda o passado, sob a pena perpetuada de nos submetermos aos mesmos erros, pois, como bem ressaltou George Orwell, “quem controla o passado controla o futuro. ”[1]
Gustavo Tank Bergström é Mestrando em Ciências Humanas e Sociais pela FCA- UNICAMP. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Presidente da Comissão de Direito Digital da 35ª Subseção da OAB/SP. Advogado.
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Notas:
[1] ORWELL, George, 1984, Companhia das Letras, 2009.