Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando
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Por Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti
A pandemia causada pelo COVID19 talvez seja o resultado da aplicação de um modelo hegemônico de Estado neoliberal, de claro viés político-ideológico, o qual, no conjunto das mutações, em diversas dimensões, vem provocando abalos marcantes sobre as culturas e os conceitos modernos sob o manto dos quais se conduzia a vida, se organizavam os Estados e as instituições; se agia socialmente, se estruturavam os relacionamentos humanos, se concebiam as regras morais e jurídicas.
Pretendemos nos debruçar sobre alguns aspectos do problema, tendo em vista avassaladora torrente de modificações que vêm ocorrendo ao longo dos últimos anos, impactando tanto o ordenamento jurídico positivo como o papel dos próprios Estados. De modo reflexivo, faremos breve leitura dessas modificações com o fim de recensear o impacto desse modelo hegemônico de Estado neoliberal no mundo, em especial no mundo do trabalho e, de certa forma, a interrelação com a disseminação desse vírus que tem abalado as estruturas do mundo contemporâneo. [1]
Tomaremos como base a chamada “crise do petróleo de 1973” que irá marcar um antes e um depois para todos e cada um dos Estados da sociedade ocidental. O discurso da crise foi o ponto inicial para fazer crer, em termos gerais, que um maior crescimento econômico, maior benefício e bem-estar seriam incompatíveis com um maior desenvolvimento democrático das sociedades e por isso era necessário deixar de lado o Estado intervencionista e incentivar a autoregulação. Todavia, os fatos estão aí para comprovar que, ao contrário do propagado, esse modelo econômico de mercado trouxe consequências gravíssimas à humanidade, em especial à classe trabalhadora.
Qualquer explicação sobre esse momento histórico não pode ser considerada satisfatória se não se levar em conta a engrenagem que envolve o processo de reorganização do capital e de seu sistema político-ideológico de dominação, que, sob o comando das grandes corporações financeiras e empresariais, obrigam os Estados a se ajustarem à nova realidade internacional. Para contribuir com o objeto primordial da análise, teremos que observar a questão da internacionalização capitalista expressa pela propaganda ideológica de mundialização e de globalização, acompanhada pela regionalização dos blocos econômicos captando nuances dos aspectos de criação do mercado mundial e as modificações impostas aos Estados nacionais.
No campo político-institucional, o novo Estado imposto pelo capital antepõe-se ao modelo intervencionista prevalecente no período pós Segunda Guerra em busca da retomada do livre mercado[2]. Nesse novo sistema global o mercado impõe aos Estados, de maneira crescente e definitiva, sua lógica econômica. Um modelo no qual a relação entre os dois subsistemas – Estado e Mercado – não é mais uma relação dialética, e sim de submissão, como acentuou Caballero Harriet[3]. Deixou de ser um Estado de Direito para ser um Estado mercado.
No campo das relações de trabalho a ordem é difundir a flexibilização do mercado de trabalho. Incapazes de fazer uma crítica ao próprio capitalismo, os teóricos do neoliberalismo invocam a crise (1973) como justificação perfeita para a desconstrução da institucionalidade do trabalho alcançada no Estado do Bem-estar-social. Através da implementação de políticas flexibilizadoras, aparentemente neutras, há logrado criar uma nova institucionalidade, onde se tenta legitimar o discurso de liberdade dos contratos, quando, na realidade, a grande maioria dos trabalhadores se encontra obrigada, cada vez mais, a aceitar as condições laborais precárias impostas por essa violenta reestruturação.
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O discurso flexibilizador incorporou no mundo do trabalho um novo espírito capitalista, como retratado por Max Weber em sua obra sobre a importância da Reforma Protestante para o capitalismo a reconfiguração do ethos, ora calcada na liberdade de escolha. A mudança dos padrões da forma de trabalho e emprego tem se operado à semelhança do que, em suas reflexões sobre o americanismo-fordismo, Gramsci denominou de revolução passiva[4]. Nessa perspectiva, inspirada no olhar crítico de Gramsci sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo, observa-se uma revolução passiva na incorporação do novo modelo de Estado, por todo um conjunto de agir, pensar e sentir dessa nova etapa capitalista; criando, a seu modo e semelhança, uma nova cultura construída pelos seus aparelhos ideológicos.
A partir dos anos oitenta, com o domínio das políticas neoliberais, houve uma progressiva liberalização e desregulação dos mercados financeiros, os quais se mundializaram sem nenhuma entidade reguladora supranacional para controlar suas atividades. Com isso, enquanto a economia produtiva representada pelo PIB mundial multiplicou-se por 5,6 entre 1980 e 2007, no mesmo período os ativos do mercado financeiro se multiplicaram por 16,2, passando de 12 bilhões de dólares em 1980 para 194 bilhões em 2007[5]. Mesmo após a crise de 2008, desta feita, em 2012, segundo dados do McKinsey Global Institute, Financial Globalization, Retreat or Reset? 2013, a relação dos ativos financeiros (capital fictício) em relação ao PIB mundial permaneceu em 356%.
Dados como estes e o mundo em pandemia, estão aí para mostrar as dimensões econômicas da financeirização do capitalismo contemporâneo, em detrimento ao investimento no setor produtivo. A acumulação financeira representa capital apenas para aqueles que o detêm e esperam rendimento, um capital fictício sob o ângulo do movimento do capital como um todo. Enquanto o investimento e o crescimento enfraquecem, os gestores de fundos recorrem à especulação e se lançam na “inovação financeira”. Esse jogo especulativo reflete-se na gestão das principais empresas, não financeiras, por meio do controle externo exercido pelos investidores institucionais, que dominam o mercado de capitais. Essa tendência à estagnação é compensada pelo endividamento das famílias para manter seu nível de consumo ou até aumentá-lo.
O compromisso neoliberal coincide com os interesses do 1% mais ricos da população, em comparação com os 99% restantes, resultando, assim, em grande aumento da desigualdade na distribuição de renda, menos crescimento econômico e endividamento generalizado.
Essa liderança do capital financeiro especulativo trata-se da nova feição do capitalismo reestruturado que também compõe a generalização do sistema de financiamento entre as economias nacionais e seus endividamentos perante as economias dominantes do sistema global. Essa dinâmica especulativa, desligada de uma base material, cresce de maneira exponencial, provocando a derrocada dos Estados nacionais. Não há como se estranhar, portanto, que os países mais avançados do mundo, que adotaram integralmente o modelo econômico neoliberal, não foram capazes de conter a disseminação do COVID 19, que já conta com mais de 18 milhões de contaminados no mundo e mais de 690 mil óbitos registrados até o momento, segundo a Organização Mundial de Saúde. [6]
Deve ser enfatizado que o empobrecimento e a miserabilidade da classe trabalhadora já haviam sido enormemente ampliados, em todas as partes do mundo, antes mesmo da pandemia. O Relatório da Organização Internacional do Trabalho, OIT, publicado em janeiro de 2020, em Genebra, Suíça, já informava que o desemprego deveria aumentar em cerca de 2,5 milhões em 2020 atingindo mais de 200 milhões de pessoas em idade produtiva. Irrefutável que a opção financeirista do capitalismo mundial, em detrimento do setor produtivo, trouxe graves conseqüências não só ao nível de empregos, também às condições ambientais, à medida que os Estados nacionais foram privados de financiamento em prol de uma política de austeridade projetada para financiar cortes de impostos e subsídios para as empresas e os ricos, como explica David Harvey, em recente artigo publicado no blogdaboitempo.
A realidade mostra que a predominância da órbita financeira sobre a produtiva vem promovendo um desenvolvimento, sem precedente, da especulação. Nessa aventura, sem futuro, quanto mais se aprofunda esse modelo mais se ampliam as possibilidades de crise, como a história tem demonstrado. Em escala mundial, a pobreza é a norma e a abundância a exceção. Em 1998 as estimativas (PENUD) eram de que as 225 fortunas mais importantes do mundo representavam um total de mais de um bilhão de dólares, isto é o equivalente a renda anual de 47% dos mais pobres entre a população mundial (2.500 milhões de pessoas)[7]. Novo relatório da Oxfam publicado em 21/01/2020 revela que os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial.[8]
Do até aqui exposto, pode-se entender as razões pelas quais, no pleno Séc. XXI, o mundo civilizado não foi capaz de conter uma epidemia que, a exemplo das epidemias havidas em séculos passados, como a “peste” e a famosa “gripe espanhola”, sua disseminação está atrelada à falta de políticas sanitárias, à fome e à miséria. Esse panorama é argumento suficiente para se refletir sobre a redefinição das teorias de mercado e o resgate do papel do Estado como regulador decisivo do sistema social. Ademais, é imperioso não permitir que o debate sobre os efeitos causados pelo coronavírus adote uma retórica falaciosa de causador da recessão, para camuflar a verdadeira causa da crise econômica.
Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti é doutora e mestra em Sociedad Democrática, Estado y Derecho pela Universidad del País Vasco, Espanha. Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie, São Paulo. Juíza do Trabalho da 21ª Região/RN. Membro da Associação Juízes para a Democracia.
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Notas:
[1] Alyson Mascaro faz uma análise muito interessante desta questão. Mascaro atribui a crise ao sistema social e ao modelo de sociabilidade capitalista já existente, que ele afirma ser intrinsecamente contraditório. A crise não é resultado do azar da natureza, mas tem raízes históricas e sociais que se assentam no modo de produção capitalista. Mascaro, A (2020). Política y derecho de la pandemia. In Crítica jurídica y política en Nuestra América, CLACSO, junho/2020, p 10-11
[2] HOBSBAWM vê impossível para aqueles que viveram os anos da Grande Depressão compreender como as ortodoxias do puro mercado livre, mais uma vez, viessem a presidir um período global de depressão no final da década de 1980 e na de 1990, que, mais uma vez, não puderam entender nem resolver. HOBSBAW, E, A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), São Paulo, 1991
[3] CABALLERO HARRIET, F. J. Algunas claves para una otra mundialización. Santo Domingo, Txalaparta, 2009
[4] GRAMSCI, Antonio Cadernos do Cárcere v. 4, 2ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
[5] ZABALO, P. Dicionário crítico das empresas transnacionales: claves para enfrentar el poder de las grandes corporaciones. Barcelona, 2012, p.117.
[6] Disponível em https://covid19.who.int/
[7] Informe Mundial sobre el Desarrollo Humano PNUD, 1998, diponível em http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_1998_es_completo_nostats.pdf
[8] Disponível em https://www.oxfam.org.br/noticias/bilionarios-do-mundo-tem-mais-riqueza-do-que-60-da-populacao-mundial/