Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Angelo Antonio Sindona Bellizia
Com uma frequência desconcertante, casos de abordagem policial violenta vêm à tona, na maioria das vezes, com resultados desastrosos, que variam, desde lesões corporais das mais variadas, até a morte de quem é abordado. Chama a atenção não somente a aspereza policial, como também o direcionamento seletivo das abordagens; via de regra, jovens, negros e pobres.
Quando não resultam na perda física, as abordagens violentas projetam-se sobre a dignidade, mais especificamente sobre o direito que tem o abordado de ter a sua imagem preservada.
No processo penal brasileiro, as abordagens policiais estão inseridas no contexto da “busca pessoal”, aquela que “incide diretamente sobre o corpo do agente[1]” e somente será autorizada quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do §1º, do art. 240, do CPP.
Ainda, a busca pessoal independe de mandado, “no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”, na leitura do caput do artigo supramencionado.
Não há a necessidade de digressões mais aprofundadas, para que se compreenda que a abertura semântica do termo fundada suspeita dá margem a abusos das mais diversas naturezas, pois consubstancia-se em “uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial”.[2]
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O indivíduo de cabeça baixa, mãos cruzadas nas costas e de rosto contra o muro, atrai curiosos, que, invariavelmente, principalmente em tempos de mídias sociais, filmam e fotografam a abordagem policial. O produto das filmagens rapidamente atinge as redes sociais e não raro, são cedidos ou vendidos à imprensa, dependendo do grau de violência da abordagem ou do “interesse público”.
Não se fala aqui na prisão em flagrante delito, mas sim, na busca pessoal aleatória, aquela do dia-a-dia, baseada na arbitrária fundada suspeita, geralmente determinada por policial militar.
A imagem[3] do abordado é então divulgada – atualmente na velocidade da luz – e o rótulo de culpado surge; a polícia efetuou abordagem e na visão de um público, também selecionado, onde há fumaça, há fogo.
É certo que tais registros audiovisuais, também poderiam – e deveriam – auxiliar na divulgação da violência policial, e por consequência, combatê-la, franqueando à população, parte do controle da atividade dos agentes. Entretanto, a necessidade de legitimação do poder punitivo estatal[4], fomentada, muitas vezes, pela distorção da realidade fático/processual divulgada pela imprensa ou por mídias sociais[5], impede que o cidadão de bem seja sacado de seu estado de torpor seletivo-punitivista. Dessa forma, combater a violência policial torna-se desinteressante, e estimulá-la, de rigor.
Consequentemente, a divulgação das imagens relativas às abordagens policiais, que trazem em seu conteúdo a população periférica submetida ao poderio de fogo estatal, presta-se a alimentar e aplacar – em um ciclo vicioso – a ira punitiva daqueles que não conseguem compreender o sentido de humanidade, cidadania e Estado Democrático de Direito.
A violação ao direito constitucional à própria imagem do abordado, então, contribui para a legitimação do poder punitivo estatal, sedimentando o seletivismo penal, que é promovido pelo próprio agente público, auxiliado pelos órgão de imprensa e impulsionados pela velocidade da sociedade da informação.
Afinal, onde há fumaça, há fogo.
Angelo Antonio Sindona Bellizia é mestre em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do IDDD. Advogado Criminalista
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Notas:
[1] LOPES JÚNIOR, Aury Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 725.
[2] Ibid., p. 725.
[3] Duval observa que o direito à imagem é um direito natural, que pode ser equiparado ao direito à vida, e independe de normativa legal , embora a positivação do direito em tela “trace limites ou restrições, aqui inconsiderados quanto ao direito à imagem, mas que os tem […] Impossível, portanto, asfixiar o direito à imagem no estreito quadro dos Direitos Privados da personalidade […] Então, a locação do direito à imagem há de ser feita no quadro dos direitos fundamentais do homem (vida, liberdade segurança e propriedade) ”. – DUVAL, Hermano. Direito à imagem. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 106.
[4] Na lição de Zaffaroni, a estimulação do medo ao crime “lo dramatiza y lo alimenta como fuente de legitimación del poder repressivo y de la respuesta punitiva: um poder, en este caso, que como antídoto del miedo obtiene de este consendo y legitimación política ”. – ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. La emergencia del miedo. Buenos Aires: Ediar, 2013, p. 62.
[5] Como observam Lopes Júnior, Oliveira e Morais Da Rosa, “na sociedade do espetáculo há uma realidade invertida, o real surge do espetáculo e o espetáculo é real. Daí não há sentido buscar a limitação disso através do respeito às garantias processuais […].” – ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JUNIOR, Aury; OLIVEIRA, Daniel Kessler. O roteiro delatado e o processo penal do espetáculo. Consultor Jurídico. 30/08/2019. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-ago-30/roteiro-delatado-processo-penal-espetaculo>. Acesso em 11/08/2020.