Imagem: Glaucio Dettmar / Agência CNJ – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Arthur Martins Andrade Cardoso
Vivemos em tempos estranhos. A defesa dos direitos e garantias fundamentais e o engajamento com a defesa dos direitos humanos são taxados como empecilhos à efetividade do processo.
O combate à corrupção se tornou argumento retórico para o total desrespeito à Constituição e às leis. O argumento da impunidade parece servir para o aceite dos mais completos e variados arroubos autoritários e violações do devido processo legal.
Hoje, como diz o Professor Lenio Streck, defender a aplicação da lei é um ato revolucionário.
Evidentemente que ninguém é favorável à corrupção, todos querem extirpá-la. Todavia, o combate a qualquer infração penal, por mais odiosa que seja, exige o efetivo cumprimento do devido processo legal. Punir é necessário e civilizatório (Aury Lopes Jr.), mas para legitimar qualquer punição há de se seguir à risca o sistema acusatório, com todos os seus caracteres.
A forma no processo penal é garantia legitimadora da punição.
A defesa do direito de defesa é conditio sine qua non da democracia. A defesa tem que ter a palavra, pode e deve ter o direito de impugnar qualquer fato criminoso imputado ao acusado; há de se conferir paridade à acusação e à defesa.
O sistema deve ser pensado e aplicado para evitar o odioso erro judiciário. Cumprir os direitos e as garantias do acusado não conduzem a inefetividade do processo, muito menos a impunidade, ao revés disso, garantem legitimidade punitiva, característica que um verdadeiro Estado Democrático e Social de Direito deve possuir.
Processo efetivo é aquele que cumpre à Constituição e às leis. Impunidade se combate com a certeza da punição para àquele que, ao final do procedimento em contraditório, restar provado acima de qualquer dúvida razoável ser merecedor de pena.
Instrumento maior, sinônimo de combate ao arbítrio, sem dúvida alguma, é o habeas corpus.
A liberdade é a regra, sua privação a exceção. E melhor instrumento não há para garantia da liberdade de locomoção do que o remédio heroico.
O habeas corpus é uma ação autônoma de impugnação, com o escopo de combater coação ilegal à liberdade de ir e vir já consumada (liberatório) ou na iminência de ocorrer (preventivo).
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Ressalte-se que, não obstante possuir um procedimento sumário (a cognição na ação constitucional de habeas corpus é limitada, não comportando dilação probatória), exige-se o processamento e julgamento quando a prova for pré-constituída, é dizer, por mais complexa que seja a questão não é permitido o non liquet se a prova ali estiver e depender somente de ampla análise.[1]
Importante pontuar, ademais, que a forma no processo penal é garantia, mas garantia do indivíduo, assim o habeas corpus não exige formalismos[2], sendo impróprias quaisquer tentativas de obstaculizar o remédio heroico em virtude de questões puramente técnicas. Até porque o único instrumento jurídico que pode ser escrito em papel higiênico, papel de pão e assinado com sangue é exatamente o habeas corpus.[3]
As considerações supramencionadas serviram como introdução para desaguar no seguinte: ode ao habeas corpus, abaixo a jurisprudência defensiva!
Em especial, o objetivo é expungir a ideia da tão propalada e aceita admissibilidade do habeas corpus. Vale dizer, por vezes o habeas corpus não é conhecido por mil e um fundamentos, o que é um erro.
Explica-se.
Necessariamente o magistrado tem que analisar o mérito do habeas corpus, uma vez que trata-se de ação constitucional tendente a denunciar atos de constrangimento ilegal, ainda que não cerceiem diretamente e iminentemente a liberdade.
É dizer, o pedido de ordem de habeas corpus deverá ser analisado em quaisquer casos de ameça a liberdade individual (preventivamente ou repressivamente) ou ainda nos casos de collateral attack[4], uma vez que em última análise o que está em jogo é a alegação de algum abuso processual.
Se diz que o mérito tem que ser analisado, porque não conhecer do habeas corpus é criação punitivista, pura jurisprudência defensiva.
Novamente, explica-se.
O habeas corpus é ação autônoma de impugnação, de status constitucional. Como sua natureza jurídica é de ação não se submete por óbvio a admissibilidade inerente aos recursos em geral. Vale dizer, se não é recurso não há que se falar em juízo prévio de admissibilidade para posterior análise do mérito.
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Poder-se-ia objetar que o habeas corpus vem previsto no capítulo dos recursos no Código de Processo Penal, é verdade; mas considerá-lo recurso é engano. Remansosa doutrina e jurisprudência classificam o habeas corpus como autêntica ação autônoma de impugnação, o que é correto.
Por oportuno saliente-se que mesmo o habeas corpus substitutivo de recurso ordinário não é recurso, também é ação de impugnação.
Assim, resta evidente que as indevidas restrições ao habeas corpus, criando fakes como o critério da admissibilidade visando o conhecimento ou não conhecimento do remédio heroico, são manifestações de pura jurisprudência defensiva. Cabe ao magistrado conceder ou denegar a ordem, nunca criar obstáculos formais que ferem a essência do habeas corpus, qual seja, denunciar o arbítrio estatal, sem formalismos e pautado na celeridade que a urgência da situação exige.
Poder-se-ia argumentar que o uso do habeas corpus está banalizado, é usado para tudo. Melhor assim do que criar filtros ou proibições inexistentes que podem em última análise cercear a liberdade de um inocente.
Defender o habeas corpus contra qualquer anseio de lhe reduzir ao menor número de hipóteses é defender a liberdade, é defender a Constituição.
O juízo de admissibilidade no habeas corpus não existe, é criação que pode custar o cerceamento da liberdade de outrem, o que é inadmissível.
Como enfatizado alhures o habeas corpus tem que ser analisado no mérito, concedendo-se a ordem ou denegando-a, mas nunca privado de análise pelo argumento do não conhecimento.
Como diz Lenio Streck:
Numa palavra final: exigir juízo de admissibilidade de Habeas Corpus e não conhecer o remédio heroico é a mesma coisa que se fazia em certo período do início da modernidade: a tortura era admitida por lei. Mas da decisão que mandava aplicar a tortura… cabia recurso. Bingo. Cabia recurso. Só que… não tinha efeito suspensivo. Pois é.[5]
Fica a ressalva final: Excelências, com o devido acatamento, praticar juízo de admissibilidade e não conhecer da ação consitucional de habeas corpus, ainda que concedida ao final a ordem de ofício, nos termos em que pedida, além de ser atécnico é estranho, muito estranho.
Arthur Martins Andrade Cardoso é Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro voluntário do Instituto Pro Bono (IPB) e Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado em São Paulo.
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Notas:
[1] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 1111.
[2] LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit. p. 1113.
[3] STRECK, Lenio Luiz. HC não conhecido é como recurso contra a tortura sem efeito suspensivo! Disponível:<https://www.conjur.com.br/2017-set-28/senso-incomum-hc-nao-conhecido-recurso-tortura-efeito-suspensivo>. Acesso em: 27 mar. 2018.
[4] LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit. p. 1121-1123.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Op. cit.