Imagem: Asp Ferrentini / Cb Francilaine – Edição: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Jorge Fofano Junior
A despeito da política, em sua acepção original, representar a essência da resolução de conflitos por meios não violentos, na história republicana brasileira, uma e outra, isto é, violência e política, andam de braços dados. A violência como ferramenta de legitimação do poder tem sido responsável por reduzir o espaço da participação no debate público, suplantar o diálogo, aniquilar dissidências e, enfim, comprometer o desenvolvimento de uma democracia sadia e representativa: sonho cada vez mais longínquo no Brasil contemporâneo. Assim, um país de dimensões continentais aprendeu a conviver com a pequena política de coronéis e mandatários, em que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, à semelhança do universo rosiano retratado em Sagarana, repleto de Coronéis Esteves e Majores Consilva.
O fenômeno da violência enquanto linguagem política não se restringe ao meio rural brasileiro, como por vezes se sugere historicamente. Alcança com a mesma dureza áreas urbanas pelo país como São Luís, a região metropolitana de Fortaleza, a cidade do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense. Só entre 2016 e 2018, 36 vereadores empossados foram assassinados no país, ainda uma subrepresentação do total de mortes envolvendo atores da política local (prefeitos, ex-prefeitos, parentes) em municípios brasileiros. A recorrência dos casos sugere que o poder municipal tem se tornado alvo prioritário de ações violentas. Através deste poder se organizam diretamente os interesses políticos e econômicos mais concretos à realidade das populações e dos territórios, tornando-se, portanto, áreas de influência cobiçadas por diferentes grupos. Agora, em 2020, mais de 100 políticos foram alvo de alguma ação violenta em decorrência de conflito de interesses envolvendo grupos paramilitares — é o que aponta levantamento inédito feito pela jornalista Cecília Oliveira. E, como posto pela própria reportagem, há razões para crer que se encaminha para “a eleição mais miliciana da história”.
O paramilitarismo contemporâneo reedita o cabresto e silencia vozes
O derramamento de sangue que se cola à política partidária-eleitoral de algumas das áreas citadas é resultado do paramilitarismo crescente, singularizado sob a ação das milícias e grupos de extermínio, notadamente no estado do Rio de Janeiro. Iniciadas ainda na década de 1970, as milícias se expandiram para partes majoritárias do estado fluminense, assumindo, em muitos dos casos, o controle monopolístico de uma economia ilegal, mas lucrativa e diversificada, que abrange desde empreendimentos do mercado imobiliário à prestação de serviços de gás e transportes para a população. O desfuncionalismo do poder público, rotineiramente às voltas com escândalos de corrupção e desvios de verba pública, abriu margem para que esses grupos paramilitares assumissem responsabilidades constitucionalmente devidas ao Estado.
Tal qual um governo paralelo, com tentáculos no poder legal, as milícias do Rio governam suas áreas, há de se imaginar, pela coerção e ameaças terminais a qualquer um ou uma — representante eleito, candidato, organizações ou indivíduos da sociedade civil no geral — que conteste a sua influência nos territórios dominados. Desta maneira, os grupos paramilitares reeditam, à sua própria maneira, as velhas políticas que sustentaram a República Oligárquica durante 30 anos no país. Por relações de clientelismo, mas também pelo cabresto, as milícias cariocas mantêm sob si um colégio eleitoral de 1.7 milhão de cidadãos, 12.8% do eleitorado total e pretendem, cada vez mais, chancelar candidaturas na política local.
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Na favela do Rio das Pedras, situada na zona oeste do Rio, o apoio das milícias permitiu que membros da família Brazão fossem eleitos a vários cargos políticos, segundo reportagem da Agência Pública de 2018. O patriarca, Domingos Brazão, ocupava a posição de conselheiro no Tribunal de Contas do Estado em 2019 quando foi indiciado pela Procuradoria Geral da República como um dos autores do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Outro suspeito de participar da morte de Marielle, membro da milícia de Rio das Pedras acusado de extorção, homicídio e fraude, era o ex-PM Adriano da Nóbrega, de quem Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) empregou familiares em cargos comissionados na Alerj. Segundo a matéria da Pública, o senador ganhou a maioria dos votos na região no pleito de 2018. Já Adriano, que se encontrava foragido, foi morto no início de 2020, em decorrência de confronto com a PM da Bahia.
O caso Marielle Franco foi emblemático, pois traduz com amargura a forma como esses grupos paramilitares reagem àqueles e àquelas que se posicionam pela justiça social e que buscam, através de um mandato combativo, reintegrar ao tecido vivo da cidade tais áreas tradicionalmente esquecidas pelo Estado e ocupadas pela versão paralela deste. A vereadora, crescida no Complexo da Maré, dedicou sua abreviada legislatura a promover projetos socioeducativos e de conscientização da população favelizada sobre questões de gênero e da negritude. Reporta-se que somente a presença de Marielle, pelo que representava enquanto mulher negra e lésbica, incomodava outros membros da casa, uma aversão posteriormente verbalizada pelo ex-PM Ronnie Lessa como suposto motivo do crime: “respulsa às causas dela”, teria dito o atirador em audiência prestada à justiça.
O clima político que se instaura no Brasil após as eleições de 2018 potencializou a ação violenta contra ativistas dos direitos humanos, como Marielle, em razão da associação que se faz entre este tema e candidaturas de esquerda. O discurso violento de extrema-direita veiculado pelo presidente e seus asseclas encontrou lar nos valores e crenças da parcela significativa das corporações militares no Brasil, atingindo, eventualmente, os grupos paramilitares. As ações de represália e ameaça dos milicianos, dentro e fora das estruturas formais do Estado, instauram um regime de medo e violência, parte integrante da necropolítica, contra a própria participação democrática, suprimindo vozes e perpetuando mecanismos de exclusão e apagamento que violentam, mais danosamente, a população periférica.
As regiões Norte e Nordeste também têm registros da atuação de grupos paramilitares que se articulam politicamente nas áreas periféricas urbanas da porção setentrional do país. Constam como recorrentes, ações de ex-PMs na aquisição e venda de unidades habitacionais do programa “Minha Casa Minha Vida” entre outros serviços prestados que constroem, pela lógica clientelista, um ativo político com repercussões eleitorais. Na esteira desses acontecimentos, está o motim dos policiais do Ceará no início de 2020, episódio em que membros da corporação, vários deles mascarados, se voltaram contra o Estado, interrompendo os trabalhos e fazendo barricadas no entorno de quartéis — a Constituição federal não prevê o direito à greve para policiais militares. O movimento foi logo alvo de disputas partidárias por figuras da política nacional e local, tendo esta última como exemplo o Capitão Wagner (PROS-CE), líder de um movimento de candidaturas policiais a posições políticas no estado e favorito à prefeitura de Fortaleza.
Em municípios do arco do desmatamento e regiões rurais, o paramilitarismo serve à proteção armada de grandes fazendeiros e grileiros de terras, avançando contra Terras Indígenas, desmatando e ameaçando coletores e agricultores familiares locais. Somam-se também os relatos de ataques a assentamentos de movimentos sociais pela Reforma Agrária, estimulados, inclusive, por entidades como a União Democrática Ruralista (UDR) Do Amazonas e Acre ao interior do Mato Grosso do Sul, o rolo compressor que devasta biomas e se põe como um dos grandes responsáveis pela violência armada no campo, usualmente associadas a flagrantes violações aos direitos humanos de pessoas indígenas e de famílias agricultoras, possui sustentáculo duplo: o braço armado na mata e a representação política oligárquica, autoperpetrante, no poder municipal.
Longe de ser um fenômeno isolado, o paramilitarismo no campo e na cidade constitui-se de uma frente única que converge para o centro de crenças do bolsonarismo. Encorajam-se pelo projeto armamentista do presidente, pelo seu descaso à proteção dos direitos humanos e pelo apreço que ele apresenta não só aos símbolos militares, mas também ao autoritarismo violento enquanto forma de fazer política. Pelo anti-diálogo, o Brasil reedita a era dos velhos coronéis oligárquicos, desta vez mais armados, tecnológicos e com maior poder de barganha político-institucional que as versões dos livros de história.
Jorge Fofano Junior é estagiário em comunicação no ITTC e estudante de jornalismo pela ECA-USP.
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